«(...) O bicho estava no visor, partido em quatro pelo retículo, o avião ganhava altura e despenhava-se sobre ele num frenesi desesperado, alongando o focinho raivoso enquanto semeava estrondos na paisagem. As armas espirravam frenéticas e ninguém podia perceber onde iam parar as putas das balas, o bicho estava no visor e continuava aos saltos provocantes no capim, se prolongarmos aqui a picada um segundo talvez nos não escape, um só segundo e resgatamos o pundonor, mais um segundo e Gaspar sente o avião a afundar-se no capim, sente-o a pentear os arbustos com o rebordo grosso das asas, sente-o a rasgar a barriga no mato rasteiro, o bicho fugiu do visor e parou de saltar quando um trovão lhe desabou no espinhaço e o matou.
Gaspar viu também a morte que ali estava. Puxou o avião para o ar antes de a viseira partida lhe ter rasgado os olhos, antes de o capacete se estilhaçar contra os ferros da carlinga, viu a morte e execrou-a num clarão de raiva, e logo se deixou inundar por uma indescritível renúncia, quase mística, quase doce, aquela morte era distinta e inelutável. Caiu sobre ele um manto escuro de aniquilamento, perdeu a consciência por força da violenta pancada na cabeça e já não assistiu à derrocada restante, nunca chegará a perceber como saiu vivo daquilo.
Esperaram por ele em sobressalto os companheiros, que ao longe o tinham visto desaparecer atrás da colina redonda. Sabiam ao que andava, o suficiente para lhe entenderem as manobras, deram conta de como o zumbir do motor se evaporara da infinita paisagem, e aguardaram que voltasse a aparecer do outro lado do monte. Mas ele já não veio pelo seu próprio pé, e ao fim de várias horas de busca tropeçaram nele a esgrimir contra o capim altíssimo, enterrado até às partes nas lodagens dum charco onde as pacaças tomavam banhos de frescura, a cabeça disforme alagada no sangue que lhe espirrava das pálpebras em chaga, cego e alucinado, em busca dum caminho improvável. (...)»
[As Aves Levantam Contra o Vento, ed. Quasi, V.N.Famalicão, 2007]