Toda a coisa assenta em várias partes.
1- A memória não é o forte dos indígenas portugueses. Nem a colectiva, nem a individual. Se tivessem memória colectiva, embora distante, haviam de criticar e lamentavam a gloriosa história que arrastam às costas. Se tivessem memória individual intermédia, lembravam-se de duas coisas: no tempo da outra senhora houve tribunais plenários, onde meretíssimos juízes avalizaram julgamentos criminosos e lavraram sentenças iníquas. Isso mostra (se não formos ingénuos) que por baixo da majestade eminente das togas, há muitas vezes pechisbeque em lugar de ouro de lei.
Na memória mais recente, lembrariam ainda que José Sócrates, desde 2005, mal entrado no governo, foi de longe o político mais marcado, mais atacado, mais perseguido, mais caluniado e mais injuriado dos tempos democráticos: as calúnias anónimas do Freeport, que ficaram por provar; as escutas e corrupções do Furacão, que magistrados e polícias de Aveiro puderam esgrimir e que ninguém demonstrou; as alegadas escutas de Sócrates a Belém, que apenas revelaram o carácter dos reais conspiradores, com a cumplicidade activa do jornalista José Manuel Fernandes num estanco da Av de Roma. Desde a sugerida mariquice ao péssimo carácter, à irascibilidade, à megalomania, à corrupção, tudo serviu para atiçar o fogo do "ódio a Sócrates". Não se via coisa assim desde o marquês de Pombal!
2 - O super-juiz Alexandre e o magistrado Teixeira justiceiro construíram a sua ficção com base num primeiro dado: em Paris, enquanto estudava, o ex-primeiro-ministro Sócrates vivia à tripa-forra, muito além das suas capacidades conhecidas; em seguida já tinha uma fortuna oculta em nome de terceiro; ora quem cabritos vende e cabras não tem de algum lado lhe vem. A fortuna teve teve origem criminosa, designadamente em actos de corrupção passiva enquanto foi governante. Tudo perfeitamente verosímil, no mais estrito respeito pelas regras da boa ficção.
A Suíça informou que nas contas bancárias não constava o nome de Sócrates; e os investigadores protelaram, pediram, sonegaram, fingiram durante um ano não ter recebido essa informação, até encontrarem um novo fio da meada narrativa. Finalmente prenderam-no quando aterrou no aeroporto, e os Magistrados Unidos VIP exultaram nos seus círculos privados do Facebook, emdesbragadas que são indescritíveis. E depois de transformarem um ex-primeiro ministro de Portugal no preso 44 de Évora, os investigadores ligaram-no ao grupo Lena, para demonstrar as comissões nos negócios da Colômbia e nas obras da Venezuela, e nos contratos da renovação milionária do parque escolar. Porque o preso 44 era um corrupto, que conduzira a política nacional ao serviço da rapina pessoal.
3 - A tenaz com que as decadentes elites nacionais pretenderam garrotar José Sócrates tem dois braços e um modo de actuação: por um lado o poder judicial, pela mão duns juízes e magistrados que são um ferrete da corporação; por outro a comunicação social mercenária, onde se destaca o SOL, o Correio da Manhã, o jornal i, e a revista SÁBADO. Outras participações são generalizadas, que os media servem os donos e estão em boas mãos. Mas são mais acidentais.
O modo de actuação desta tenaz apoia-se desde sempre no crime da violação do segredo de justiça, em cujo banco dos réus só cabe o traseiro mal-lavado de juízes, magistrados e polícias ligados à investigação. São eles que distribuem (venderão eles?) o pão da informação secreta das averiguações a jornalistas famintos. O resultado só pode ser um, e todos eles o sabem muito bem: na tosca, na primitiva, na primária opinião pública indígena, Sócrates está condenado há muito tempo! Sem nunca ter sido arguido, nem julgado, nem sentenciado.
4 - E no entanto, uma vez que tudo isto não passa de ficção, as provas factuais, retumbantes e definitivas não aparecem. E é cada vez mais claro e evidente o falhanço estrondoso destas investigações. É por isso que já se vai saltando para a etapa derradeira. Já se vai tirando a conclusão de que a maior de todas as fragilidades de Sócrates é que qualquer outro cenário que não a sua culpa é mais grave para o regime do que a sua inocência. No dia em que Sócrates saísse do tribunal como inocente, o custo seria altíssimo. (...) Num caso a democracia fortalecer-se-á; no outro ficará envenenada.
Quer dizer, a questão que o país tem com o preso 44 já não é uma questão jurídica. É aquilo que sempre foi, uma questão política. Que não procura atingir só o preso 44, mas também danificar o PS, a direcção de António Costa e a governação do país. Tal e qual como aconteceu no caso Casa Pia, em que o PS ficou decapitado
José Sócrates pode muito bem vir a apodrecer em prisão preventiva, num aljube qualquer, às mãos destes carrascos. Não é ele o primeiro caso na nossa história! Mas o super-juiz Carlos Alexandre e o seu comparsa do ministério público Rosário Teixeira bem andarão ao pendurar-se num candeeiro, antes de largarem o osso que abocanharam ao serviço de agendas ideológicas, que não são terreno da Justiça. A ver se esta terra de cobardes e sonsos encontra algum dia salvação.