sábado, 30 de maio de 2015

3º andamento

Em Alpedrinha, no solar do Picadeiro, não encontrei o simulador de voo que estava prometido. O mais certo é não ter surgido à câmara nenhum FMI disposto a financiá-lo! Mas encontrei este livro do Pedro Eiras e trouxe-o para casa.
É uma colectânea de textos, heteróclita e surpreendente, que estou ainda muito longe de entender. Mas já o primeiro texto a justifica.
Nós limitamo-nos hoje a usufruir da obra de Johann Sebastian Bach, isso nos basta. Nem pensamos um segundo naquilo que terá sido a sua vida de criador musical. O texto é uma longa carta, às vezes comovedora, de Anna Magdalena Bach, sua segunda mulher, ao Reitor da Escola de Cantores de São Tomás em Leipzig. E dá conta da precariedade em que ficou a viúva, da longa série de filhos do mestre e do casal, e sobretudo do abandono e da polémica que a obra de Bach suscitou, após a sua morte.
" (...) Que farei com trezentos e cinco táleres, ainda que me concedam o direito de viver nestes apartamentos mais seis meses, ainda que os meus filhos se dispersem entre as casas dos seus irmãos, noutras cidades, e eu os perca e deixe de os ver? Que farei, se as minhas filhas adoecerem? Quando precisar, posso vender os móveis que restam da casa, tão poucos. Os meus enteados estão longe: Wilhelm Friedemann em Halle, Carl Philipp Emanuel em Berlim. Sei que ajudarão a publicar as obras de seu pai, conhecem editores, decerto a Arte da Fuga ainda verá a luz do dia, e será como uma última oferenda aos apreciadores do contraponto, hoje tão desprezado mesmo entre quem diz amar a música. Não tenho ilusões. (...)"

" (...) Sim, Wilhelm e Carl Philipp estimam as composições do pai. Como não as estimariam? Foi por elas que aprenderam a arte da música. (...) E com os filhos já adultos (Bach) tocava os concertos para dois e três cravos no Café Zimmermann. Porém, hoje ambos servem a cidade de Halle e o rei da Prússia no lugar de organistas, cravistas e compositores; sei que abandonam o velho estilo do contraponto, e compõem a música ao novo gosto das cortes, leve e floreado. Mas eu sou apenas uma pobre mulher e eles servem os seus senhores, como poderia criticá-los? 
Mudaram-se os tempos e a música. (...) Pois a música não é eterna, diz-se, mas segue os gostos que passam."

" (...) Escrevo na casa vazia, e recordo aquela crítica de Scheibe contra a música do meu falecido esposo, há tantos anos, onde acusava as obras de serem demasiado ornamentadas, em conflito com a ordem simples da natureza. (...) Agora, desta crítica vou ouvindo as repetições, como uma planta daninha que se enraizasse, como se o meu esposo tivesse cometido um crime que mais valesse esquecer. E assim é esquecido. Incomoda, continua a incomodar. E esta cidade não perdoa a quem segue a sua lei mais verdadeira. (...)"

" (...) Tenho quarenta e nove anos, envelheço, vou morrer. Tive treze filhos, perdi sete. (...) levanto os olhos da folha e penso que vejo as mãos de Johann Sebastian, as veias, as manchas castanhas na pele, as mãos que dantes tocaram os órgãos de Leipzig, mãos cegas e inúteis. Levanto os olhos, deixo de o ver, era apenas a sombra duma nuvem a passar na janela, o resto dum cheiro de tabaco, suave engano que se esvai, uma despedida, estou sozinha outra vez. (...)"

" (...) Mas ainda que as partituras sejam esquecidas, ainda que ninguém mais cante estas obras, ainda que vendam e dispersem as cópias, e daqui a seis meses me façam sair destes apartamentos, ainda assim, a alegria de eu ter conhecido esta música, essa nunca me podereis pagar nem tirar. Pois a necessidade é cruel, são terríveis o frio e a fome, frágil o ânimo dos homens, e os exércitos atravessam as terras destruindo tudo quanto encontram. Mas que eu tenha ouvido um motete como Singet dem Herrn, que eu tenha ouvido e cantado está música, já nem esquecimento nem violência nenhuma, nem o frio e a fome, me podem nunca roubar. (...)"