Tem
a sua história tudo quanto há sob a rosa do sol. Assim o viajante que ali vai, ou este seixo que ri no espelho da ribeira, a própria rosa do sol. Também tem história sua este Cristo que do nicho
nos observa, pequena coisa parece na penumbra de
capela, que mágicos poderes esconderá tamanha simplicidade.
Saiu,
há muitos anos, das mãos dum mestre carpinteiro, que aparelhava carros de bois por estas terras. Era Inverno, de noites pesadas, quando o
mestre por aqui se quedou em trabalho. E foi ao serão dos seus rudes lavores de
escopro e enxó que deu lugar a mais perfeitas vozes e emoções do seu ofício antigo.
O Cristo que assim nasceu numa noite de Inverno era de pau de amieiro. Encostava à alta cruz um corpo desproporcionado, em que a arca do peito se avantajava às dimensões do ventre, cavado pelas dores
do calvário, e das coxas sumidas pela febre do azorrague pagão. Os membros eram
diminutos, feitos só para fixar os sacrílegos cravos, que o místico empenho
do mestre carpinteiro assim viu de desconformes tamanhos, e desde modo fixou em cabeças
desmesuradas.
Os
pálidos tons da matéria original davam-lhe ao corpo as cores naturais da agonia e do suplício, que ainda hoje mantém. Ficou decerto satisfeito o
mestre com a obra, salvo o incómodo vermelhão de um nó aflorando, e que do
informe tronco original vinha a corresponder exactamente ao alto da cabeça. A bico de canivete lhe lavrou esta mistura de coroa de espinhos e
desgrenhada melena, que veio salvar a situação.
Não
sabemos por que modos foi este Cristo parar a casa de um moleiro, à beira da
ribeira. Nem se lhe agitou as noites o cantar da mó alveira sobre o grão, nem as
invernias que terá contado até ficar sozinho, na mesinha de um quarto sem janela,
quando o moleiro, a tanto forçado pelas andanças do mundo, abandonou por outras
as sagradas artes da água e do pão. O que temos por seguro é que, num certo
dia, um cristão que passava ao correr da ribeira decidiu entrar a porta
escancarada do moinho abandonado, e sobre a mesa encontrou o solitário Cristo,
afogado em humidades. E sobre a face esquerda, do alto da cabeça lhe
escorria um lento fio de sangue sofredor. Cristão dos verdadeiros, no íntimo
consumido ao fogo dos pecados que o Salvador sozinho ia expiando, levou
consigo o Cristo, e a todos convenceu da evidência milagrosa do divino sinal.
Era, por certo, a mordedura dum espinho dos
pecados dos homens, nunca findos e nunca finalmente expiados, que assim
atormentava a salvadora carne. Era um alarme do céu, um grito às
consciências, quem sabe se uma trágica advertência, uma tão vermelha lágrima de
sangue assim correndo.
Cuidado
pelos temores da contrição geral, ao Cristo foi cedido um nicho na capela. Houve
que desalojar um São Teotónio, mas esse era um velhíssimo abade, obtuso e distanciado. Não lhe constava real e visível sacrifício, a troca
não deixou remorsos a ninguém.
Veio
o Inverno. Não era preciso que o Inverno viesse para trazer a chuva, elemento
ignorado porém de grande peso nesta história. Por estes montes tão velhos como
o mundo, é sabido que as nuvens se desatam sem tempo nem pretexto. E a invernia chegou, muito molhada e muito persistente. Antigo e mal-cuidado, o telhado da
capela fazia o que podia para guardar em recato os místicos inquilinos. Mas uma
telha, idosa telha mourisca, que mais fraca saíra das mãos do forneiro, e
que estava ali mesmo à flor da parede, cedeu a tanta água. O tecto gotejou, e
uma lágrima de sangue vermelho e sofredor voltou a correr pela face esquerda
deste Cristo.
A
repetida ocorrência foi notada com o maior alvoroço, e deixou um fundo de
aflição. Vieram, devotas, as zeladoras, a recolher a gota num sudário de linho. As vozes de milagre, agora urgentes e definitivas,
voltaram a correr mundo. Cedeu, enfim, a rebeldia duns incréus, e
acordou-se para Março uma jornada de louvor e desagravo. Romaria que juntasse os povos rendidos ao fervor divino, sem folguedos nem outros
paganismos. Notou uma zeladora mais atenta que havia humidades no tecto da capela. E a intempérie atingira o pobre nicho, porventura afligindo
o Cristo desta história. Era tempo e ocasião de correr o telhado, não há
como os trovões para valer a Santa Bárbara.
Serenaram
os ânimos na pacatez da vida. Mas o que não esmoreceu foi o ardor da
fé dos romeiros, os de mais perto e os de longe. Atraídos por este aroma de
sobrenatural, pressionados por correntes aflições de vida madrasta, de porco
doente ou de filho distante, foram aparecendo em número cada vez maior. Pediam
milagres e deixavam oferendas. E levavam para as suas terras o mesmo coração
aflito, temperado agora no bálsamo desta celeste intimidade. Assim começou este
Cristo a ouvir notícia dos seus próprios milagres, e sentiu uma indizível comoção
interior.
Já
vinha perto o dia da romagem. Ninguém voltara a ver sinais de sangue na tosca
face do Cristo. Mas ninguém duvidava de que, nesse dia, a mão divina, insondável e magnânima, voltaria a manifestar-se. O povo andava contente, e a
chuva que voltou, persistente como por estes montes sempre cai, era a única
preocupação. Na véspera combinou-se que, diante da invernia, justo era não
fazer sair os andores em procissão. De mortificações do corpo tinham os santos
todos larga história, seria desamor martirizá-los mais. Além disso eram fatos e
enfeites que se punham em risco, eram rendas e veludos expostos à ruína. O bom
senso fechou as cerimónias na capela, a devoção de cada um lhes acrescentaria o
que perdiam em fulgor de vistas.
Quando a noite chegou e, tudo preparado, o último devoto fechou a porta da capela, o
Cristo da ribeira estava preocupado. Não lhe desagradava este conforto do nicho
seco e protegido por um telhado novo. Mas pesava-lhe na alma,
tanto como o peso dum renovado calvário, a decepção que inundaria os corações do povo, se o divino choro não voltasse no dia da Sua festa.
Passou neste conflito a noite inteira. E de madrugada, caía por esses montes
a água que Deus mandava, subiu sorrateiro ao telhado e partiu uma telha
que ali estava, rente à flor da parede.
Na manhã seguinte uma lágrima vermelha escorregava pela face esquerda
deste Cristo. De novo exultaram os povos, postos assim entre o temor divino e a
mística exaltação. E desde então, sempre que a chuva regressa, nova gota se derrama. Porque os humanos pecados
são sem fim.
[Texto de 90, retocado]
[Texto de 90, retocado]