sexta-feira, 8 de maio de 2015

Ei-los!

«Reconhecemo-los à distância, mal aparecem no pequeno ecrã a comentar, nos jornais como escritores subalternos e nos postos oficiais onde o culto do arrivismo passa por razão de Estado: são os eternos ex-, os renegados da extrema-esquerda que renunciaram à utopia, os arrependidos de ideias, agora tão realistas por princípio que o seu realismo é uma nova ideologia, tão autoritária como a anterior. Eles constituem uma categoria, uma classe intelectual. Que tenham mudado, é normal, e nem se imagina que pudessem hoje estar no mesmo sítio, imobilizados nas mesmas ideias, indiferentes ao andamento do mundo. Não é a apostasia que deve ser criticada. Espantoso e criticável é que se tenham conformado aos mesmos estereótipos e repitam a disposição mental de notários que o escritor Marcel Jouhandeau (figura merecedora de muitas reservas, mas neste aspecto tão certeira) previu que seria a evolução dos manifestantes de Maio de 68: “Voltem para casa! Daqui a dez anos serão todos notários”. Eles, sim, constituem uma “geração”, palavra horrível para designar um coágulo de ideias colectivas, de gestos gregários e de camaradagens. (…)
Os membros desta classe conhecem-se muito bem uns aos outros e continuam a cultivar a mesma camaradagem de outrora, talvez um pouco menos marialva, mas solidificada por um comum desejo de conformismo, fundamental ao culto do realismo, da política das coisas. (…) Esta classe é na verdade composta por filisteus, orgulhosos de o ser, (…). “Ética” é geralmente o nome que estes novos teólogos dão à sua ideologia. E é instalados nessa “ética” que ministram as suas lições. Tendo feito acentuadas viragens à direita, eles não se confundem no entanto com a velha direita: acumulam o que há de pior de um lado e de outro. Podem ter renegado tudo, podem ter feito um enorme esforço de reciclagem, podem estar treinados para triunfar no novo ambiente, mas há uma coisa de que não se libertam: as suas estruturas mentais e os seus métodos. Por isso é que são eternos ex-. (…) Falam todos a mesma linguagem e caracterizam-se por um espírito reactivo. Têm um estilo. (…)
(Vejam-se dois casos extremos: Helena Matos e João Carlos Espada). A personalidade destes ex-esquerdistas convertidos com devoção à nova ordem (não apenas política, também social, familiar e moral) é também uma estética e confirma-se num gosto por todos os valores seguros: pelo neo-classicismo kitsch; pelos escritores que “escrevem bem”; pelos cineastas que sabem contar histórias; pelos artistas que exibem o savoir-faire da tradição.»
[António Guerreiro, in Ipsilon]