«Reconhecemo-los à distância, mal aparecem no pequeno ecrã a
comentar, nos jornais como escritores subalternos e nos postos oficiais onde o
culto do arrivismo passa por razão de Estado: são os eternos ex-, os renegados
da extrema-esquerda que renunciaram à utopia, os arrependidos de ideias, agora
tão realistas por princípio que o seu realismo é uma nova ideologia, tão
autoritária como a anterior. Eles constituem uma categoria, uma classe
intelectual. Que tenham mudado, é normal, e nem se imagina que pudessem hoje
estar no mesmo sítio, imobilizados nas mesmas ideias, indiferentes ao andamento
do mundo. Não é a apostasia que deve ser criticada. Espantoso e criticável é
que se tenham conformado aos mesmos estereótipos e repitam a disposição mental
de notários que o escritor Marcel Jouhandeau (figura merecedora de muitas
reservas, mas neste aspecto tão certeira) previu que seria a evolução dos
manifestantes de Maio de 68: “Voltem para casa! Daqui a dez anos serão todos notários”. Eles, sim, constituem uma “geração”, palavra horrível para designar
um coágulo de ideias colectivas, de gestos gregários e de camaradagens. (…)
Os membros desta classe conhecem-se muito bem uns aos outros
e continuam a cultivar a mesma camaradagem de outrora, talvez um pouco menos
marialva, mas solidificada por um comum desejo de conformismo, fundamental ao
culto do realismo, da política das coisas. (…) Esta classe é na verdade composta por filisteus, orgulhosos
de o ser, (…). “Ética” é geralmente o nome que estes novos teólogos dão à sua
ideologia. E é instalados nessa “ética” que ministram as suas lições. Tendo
feito acentuadas viragens à direita, eles não se confundem no entanto com a
velha direita: acumulam o que há de pior de um lado e de outro. Podem ter
renegado tudo, podem ter feito um enorme esforço de reciclagem, podem estar
treinados para triunfar no novo ambiente, mas há uma coisa de que não se
libertam: as suas estruturas mentais e os seus métodos. Por isso é que são
eternos ex-. (…) Falam todos a mesma linguagem e caracterizam-se por um
espírito reactivo. Têm um estilo. (…)
(Vejam-se dois casos extremos: Helena Matos e João Carlos
Espada). A personalidade destes ex-esquerdistas convertidos com devoção à nova
ordem (não apenas política, também social, familiar e moral) é também uma
estética e confirma-se num gosto por todos os valores seguros: pelo
neo-classicismo kitsch; pelos escritores que “escrevem bem”; pelos cineastas
que sabem contar histórias; pelos artistas que exibem o savoir-faire da
tradição.»
[António Guerreiro, in Ipsilon]