Nos últimos tempos já só descia à rua de galochas e máscara no nariz, o desconchavo de alguns condóminos atingira proporções inauditas. Que ele, a bem dizer, o ambiente local nunca fora o que pudesse chamar-se impoluto. Desde há muito que vivia no andar de baixo uma cabra do gerês, um lince da malcata no terceiro-esquerdo, e no rés-do-chão um buldogue assustador, feio como os trovões.
À noite saíam todos ao beco, a soltar a musculagem de eunucos, e sempre que os encontrava no elevador era sabido que metia pulgas em casa. O pior, no entanto, era o estado em que ficavam os passeios. Havia sempre um distraído a patinar nos monturos, quando não era um noctívago azarado que aparecia espalmado em cima deles.
Começou a sair apenas em altura de grandes enxurradas, ou nas noites em que o pessoal da câmara varria as imundícies à força de agulheta. Um dia, a menina do quinto-esquerdo recebeu nos anos um pónei da Cornualha, e os tipos do quarto-frente encontraram abandonado numa estrada da província um velho asno andaluz, coberto de mataduras. Logo o empilharam no reboque da mota de água, e amesendaram-no na marquise.
As coisas agravaram-se muito, desde então, em aromas e em espécies, e ele passou a descer à rua de escafandro. Até que um garoto do terceiro-rectaguarda pediu ao pai natal um hipopótamo do rio loge. Nessa noite juntou à pressa um par de pertences e fugiu de casa. Apanhou o primeiro táxi e mudou-se para uma álea do jardim zoológico, onde foi ocupar a jaula devoluta dos tigres de bengala, que morreram de pasmo no outono. Por vezes ainda rosna às visitas. Mas não quer outra vida.
***Eco de 2002