"É um fenómeno curioso: o país ergue-se* indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto.
Falta-lhe o romantismo cívico da agressão.
Somos, socialmente, uma colectividade pacífica de revoltados."
*levanta-se da cama
[Miguel Torga]
Aqui há uns quarenta anos, um dia, ou uma noite, já não sei bem, a coisa foi diferente, hás-de lembrar-te. O romantismo cívico da agressão chegou-nos duma vez, com a redenção num alforge.
Mas o que te está a escapar é o calibre dos nossos loureiros, dos cavacos, dos limas, dos isaltinos, dos barretos, dos mouras, dos catrogas, dos moreiradasilvas, dos ângelos, dos arnauts, dos amarais, dos barrosos, dos varas, das cardonas, dos trânsfugas, dos oportunistas, dos mixordeiros das leis, dos precários da informação, dos pedófilos que levam para a cama a liberdade a democracia e a lei para as violarem no escuro, o que te está a escapar é o calibre dos nossos portas, dos nossos passos, dos nossos gaspares, dos relvas, ai, dos nossos relvas.
Lembras-te do Pedro de Alfarrobeira, o das sete partidas, lembras-te do Damião de Góis do pensamento novo, lembras-te tu do Pombal, essa bestiaga iluminada e útil, lembras-te de tantos outros, lembras-te de ti próprio? Lembras-te do que nos fizeram a essa gente toda?!
E ainda te lembras do Sócrates?! O gajo era uma besta como todos nós, passava a vida a cometer erros, a enganar-se, às vezes a ser enganado! Lembras-te dos sete anos de ódio personalizado que nele concentraram, das barragens de artilharia múltipla a que o submeteram, do fogo lento e constante em que o foram queimando?
Não se via coisa assim há muito tempo. Mas a História repetiu-se, até que nos levaram a queimá-lo. Foi o último governo que tivemos digno desse nome, que nos alimentaria os vícios mas nos cultivava o amor-próprio, em vez de nos fazer corar e ter vergonha de tanta decadência.
O que te está a escapar, meu velho, é que até uma Oposição de mansos, que uns são andróginos e outros hermafroditas, toma parte no festim. E com romantismos cívicos não se mata a fome aos filhos.