Não queria estar na pele do
procurador-geral e ter que desfazer o imbróglio da toureirada comemorativa dos
300 anos do aposento da vila. Eu tinha visto o cartaz no barbeiro, achei
estranho prometerem 6 toureiros 6, gordos e lindos, mas deixei-me tentar. Mal
sonhava eu no que me estava a meter.
Às cinco da tarde lá fui, munido
duma sombra, e a vozeada ensurdecia quando entrei. A bancada, literalmente à
cunha, era um estendal de gado comum, com perdão dos bravios ferros fidalgos
que também por lá havia, a transpirar trapio. O ambiente era escaldante,
segundo atestavam os leques frenéticos, e dois cabrestos penteavam a areia do
redondel, enquanto outros dois aspergiam água da rede dos bombeiros.
Esgueirei-me para trás dum burladero e fiquei a ver em que paravam as modas.
Eu bem via andar por ali um touro
espaventoso, a muletar chicuelinas, e um cavalo a desenhar volteios de
aquecimento. Porém, o espanto maior aconteceu ao desaguar no redondel um
desgarrado peão em traje de luzes, quando abriram a porta dos curros e a praça
inteira vozeou o primeiro olé.
A partir daí não podia ser maior
o desconchavo. O cavalo, muito garboso, executava piruetas da escola vienense,
enquanto brandia o capote à frente do toureiro, para o arrancar às tábuas. Mas
ele refugiava-se desesperadamente na querença natural, e a muito custo saía dos
terrenos do curro. O touro, por seu lado, assim que o pobre peão se aventurava
nos médios, castigava-o com a sorte da anca aberta, encaixando-lhe vistosas
bandarilhas na pescoceira. A bancada ruminava que era um gosto, urrava olés e
exigia música.
A certo ponto fez-se um grande
silêncio, quando o touro apontava a estocada final e o inteligente se levantou
da poltrona. Interrompeu ali mesmo a faena, e convocou de imediato uma reunião
tripartida.
Mas já não foi a tempo. O
toureiro deu de joelhos, num gesto comovente, e duas mulas arreadas a preceito
levaram-no em sangue pela arena, enquanto a afición reclamava as orelhas. Eu
pus-me ao fresco, a assobiar o embuçado, não fosse alguém tomar-me por
aficionado.
[***Eco de 82]