O que tiveres a dizer, (ou mais exactamente aquilo que não podes deixar de dizer!), é a primeira coisa fundamental. A segunda coisa fundamental é o modo como o dizes.
E não há mais segredo nenhum na literatura.
Escritor é aquele que tem lá dentro alguma coisa que não consegue deixar de dizer. Uma espécie de assunto de alma. O mais certo é que já tenha sido dita alguma vez, que seja uma repetição do já ouvido, tantas são as vozes que há no mundo. Mas se for uma coisa que tu não podes calar, então, e só então, conseguirás dizê-la de um modo nunca usado.
E assim deixou de haver repetição inútil. Porque disseste a mesma coisa, dum modo inovador. O que não é igual.
Um mestre disse que oitenta por cento da literatura é linguagem. Isto é, são as palavras e o modo de as usar. Porque nada se desgasta tanto, e tão depressa, como as palavras que infatigavelmente rolamos na boca a toda a hora, tão linguarudos que somos. Só a arte as salva do aniquilamento e da rotina.
Quem não tiver lá dentro alguma coisa que ainda não foi dita, ou, tendo-o sido, a não diga dum modo que nunca foi ouvido, não passa dum tarimbeiro escrevente, cujo único gesto útil é calar-se. Só pode passar a vida a desfiar linguados de prosa para alienar consumidores, como agora se designam os leitores.
Neste seu primeiro livro, João Ricardo Pedro conta do já ouvido: a nossa vida, muitíssimas vezes já falada. Mas fá-lo de um modo novo, nunca ouvido. A criação literária é isto. E o que isto não for, não passa dum embuste que dá sono.
Vai lê-lo, que te divertes, e emocionas, e aprendes. Que mais queres tu?! Aqui te fica um abre-boca.
Certa vez, no Norte de Angola, debaixo de um calor infernal, o então tenente-coronel António de Spínola, na companhia do capitão Leandro Carraça, do furriel António Mendes e do soldado Jacinto Marta, ordenou a este último que parasse o jipe. Por cima das densas copas das árvores adivinhava-se um céu de chumbo e, apesar de serem três e meia da tarde, seguiam de faróis acesos. O soldado Jacinto Marta obedeceu prontamente à ordem, e o tenente-coronel António de Spínola apeou-se num salto aparatoso, sem, no entanto, deixar cair o monóculo e o pingalim. Depoias virou-se para o capitão Leandro Carraça e para o furriel António Mendes e pediu-lhes que fizessem o favor de o seguir.
O Capitão Leandro Carraça, no tom ponderado que lhe era habitual, fez notar que talvez não fosse boa ideia o soldado Jacinto Marta ficar ali sozinho e sugeriu que o furriel António Mendes permanecesse, igualmente, junto da viatura. Argumentou, ainda, mas agora num tom irónico que não lhe era nada habitual, que dois oficiais bastariam para resolver o assunto. (...)
O tenente-coronel António de Spínola conhecia muito bem o capitão Leandro Carraça e admirava-o, também, por essa característica. Esteve prestes a sugerir-lhe que fosse resolver o assunto sozinho, mas temeu ser mal interpretado. Desapareceram os dois no meio do mato.
Dentro do jipe, ansioso por usufruir da liberdade que lhe conferia a momentânea ausência dos dois oficiais, o soldado Jacinto Marta aproximou-se do furriel António Mendes e perguntou-lhe baixinho, com a boca quase colada ao ouvido, se achava que o tenente-coronel António de Spínola, antes de se pôr a mijar, tirava as luvas. O furriel António Mendes riu-se e confessou-lhe que desconhecia por completo o que diziam os regulamentos militares a esse respeito e nunca tivera o privilégio de assistir à forma como o tenente-coronal António de Spínola os cumpria. Acenderam, cada um, o seu cigarro.
O soldado Jacinto Marta perguntou ao furriel António Mendes se achava que o tenente-coronel António de Spínola e o capitão Leandro Carraça iriam convencer o sargento Raul Figueira a descer da árvore e a voltar para o aquartelamento. O furriel António Mendes respondeu que o tenente-coronel António de Spínola era um militar muito persuasivo e o capitão Leandro Carraça era um homem bom, e que essas duas qualidades juntas talvez conseguissem demover o sargento Raul Figueira da ideia de ficar a viver em cima duma árvore até a guerra acabar. Além disso já tinham passado três dias, e o homem devia estar cheio de fome e de sede. (...)
Já de pouco valia continuarem debaixo do jipe, mas o furriel António Mendes teve a sensação de que iriam ficar ali para sempre. Depois de um longo silêncio, um silêncio que não era de todo um silêncio, por causa da chuva, por causa das árvores, por causa do barulho do motor, por causa do gato Joseph, por causa do gato Ezequiel, por causa dos bichos todos mais o sangue a escorrer pelas pernitas da Isaura, um silêncio que, ainda assim, era um silêncio profundíssimo, ouviram-se duas pancadas fortes desferidas sobre o capot do jipe e a voz do tenente-coronel António de Spínola a perguntar se aquilo era algum exercício militar, se, por acaso, a viatura apresentava algum problema mecânico. (...)
E, nesse momento, a cerca de vinte metros, surgiram dois vultos: o capitão Leandro Carraça e o sargento Raul Figueira que caminhava com extrema dificuldade - nada de estranhar em alguém que vivera os últimos três dias empoleirado numa árvore. (...)
Os cinco militares, completamente encharcados, montaram no jipe: o soldado Jacinto Marta ao volante, o tenente-coronel António de Spínola a seu lado, o furriel António Mendes, o sargento Raul Figueira e o capitão Leandro Carraça no banco de trás.
As bátegas de água fustigavam-nos violentamente, e o caminho de terra parecia, agora, um autêntico rio de lama. O soldado Jacinto Marta apresentava notórias dificuldades em controlar a viatura, e nem a presença de um dos mais altos graduados de toda a hierarquia militar portuguesa o inibia de interpelar, alternadamente, e com igual devoção, S. Jerónimo, Nossa Senhora da Conceição e a cona da tia Alice. (...)
O soldado Jacinto Marta olhou-o sem entender.
O tenente-coronel António de Spínola soltou uma gargalhada e explicou-lhe que (as três velas) eram para ele acender, em forma de agradecimento, aos seus três protectores: S.Jerónimo, Nossa Senhora da Conceição e a outra, de que, por razões óbvias, ele não se sentia em condições de pronunciar o nome. (...)