O finamento da tia inocência deixou-me
nas mãos uma herança apetitosa, que resolvi festejar com lavagante. Corri à
frutos do mar e logo me atendeu um moço radiante, de prazenteiro lápis em
riste.
Escolhi uma mesa em frente do
aquário, para não perder nenhum pormenor da função, e vi perfeitamente o que se
passou. O rapaz foi metendo sorrateiramente o braço na água, direito aos
gorgomilos do bicho, enquanto a fera assobiava para o ar, encostada a um
calhau. Apenas entreabriu uma das pinças, como quem solta a patilha da
espingarda. E, quando teve ao alcance a mão do moço, logo lhe trinchou uma
falangeta.
Apanhado de surpresa, o rapaz
levou uns minutos a recompor-se, mas acabou por arregaçar as mangas e voltar à
carga. E foi num ai que se achou sem o resto do polegar.
Eu fiquei ainda mais aflito do
que ele, já via o pobre do sujeito a ficar maneta de todo. Procurei
contemporizar e sugeri-lhe que me trouxesse uns pés-de-burro. Mas o
estardalhaço que se levantou lá do fundo, atrás da tina dos lamelibrânquios,
não prenunciava nada de bom. E eu só percebi a razão daquilo tudo quando o
rapaz voltou desfigurado, um fio de sangue a alastrar entre os olhos. Tinha
apanhado um belíssimo coice na testa.
Ainda lhe pedi umas cadelinhas
mas o desgraçado capitulou, à medida que foi perdendo sangue. Sentou-se,
pálido, ao meu lado, e encarregou-me de mediar o conflito. Que fosse
conferenciar com o crustáceos, e descobrisse um modo de transpor acção tão
radical.
No concílio que se seguiu usei da
melhor diplomacia, mas tudo foi em vão. O lavagante não estava disposto a
abdicar do estatuto nem dos pergaminhos, sustentava que a tetravó fora íntima
das baixelas de luís xiv e dos cardeais de roma. E quase me calou, ao gritar
que não se sujeitava aos modos das turbas do bairro, que apareciam ali de
calção plebeu e perna peluda exposta, de palitinho no dente.
Ainda esbocei protestar com as
leis do mercado e do mundo moderno. Mas logo as ostras, completamente fora da
ordem de trabalhos, impuseram a questão da poluição geral das águas, que
dizimava colónias inteiras. E todos vociferavam contra o exagerado esforço de
pesca no aquário, e contra as desleais artes do camaroeiro.
Dispenso-me de relatar tudo
quanto foi dito, a gritaria era muita e a desordem ameaçou instalar-se por mais
que uma vez. Mas ouvi ainda aludir ao mercado negro de armamentos, pelos vistos
já havia emissários na líbia, enquanto não fosse obtido um contrato exclusivo com o
pentágono.
Retirei-me das negociações com um
aperto na alma, afinal a crise era mais profunda do que imaginar se podia.
Procedi a uma reflexão madura durante o resto da semana, e de pouco me serviram
os contactos que mantive com a gerência da frutos do mar. Acabei por entregar o
caso ao secretário-geral das nações unidas, não me passava pela cabeça que
fosse tão radical o desencontro entre comedores e comidos. E lamentei afinal a
morte da tia inocência. Quem irira supor que o sossego do mundo dependia assim
de mãos tão frágeis e enrugadas.
***Eco de 2002