quinta-feira, 28 de junho de 2012

Ecos - 9***


O finamento da tia inocência deixou-me nas mãos uma herança apetitosa, que resolvi festejar com lavagante. Corri à frutos do mar e logo me atendeu um moço radiante, de prazenteiro lápis em riste.
Escolhi uma mesa em frente do aquário, para não perder nenhum pormenor da função, e vi perfeitamente o que se passou. O rapaz foi metendo sorrateiramente o braço na água, direito aos gorgomilos do bicho, enquanto a fera assobiava para o ar, encostada a um calhau. Apenas entreabriu uma das pinças, como quem solta a patilha da espingarda. E, quando teve ao alcance a mão do moço, logo lhe trinchou uma falangeta.
Apanhado de surpresa, o rapaz levou uns minutos a recompor-se, mas acabou por arregaçar as mangas e voltar à carga. E foi num ai que se achou sem o resto do polegar.
Eu fiquei ainda mais aflito do que ele, já via o pobre do sujeito a ficar maneta de todo. Procurei contemporizar e sugeri-lhe que me trouxesse uns pés-de-burro. Mas o estardalhaço que se levantou lá do fundo, atrás da tina dos lamelibrânquios, não prenunciava nada de bom. E eu só percebi a razão daquilo tudo quando o rapaz voltou desfigurado, um fio de sangue a alastrar entre os olhos. Tinha apanhado um belíssimo coice na testa.
Ainda lhe pedi umas cadelinhas mas o desgraçado capitulou, à medida que foi perdendo sangue. Sentou-se, pálido, ao meu lado, e encarregou-me de mediar o conflito. Que fosse conferenciar com o crustáceos, e descobrisse um modo de transpor acção tão radical.
No concílio que se seguiu usei da melhor diplomacia, mas tudo foi em vão. O lavagante não estava disposto a abdicar do estatuto nem dos pergaminhos, sustentava que a tetravó fora íntima das baixelas de luís xiv e dos cardeais de roma. E quase me calou, ao gritar que não se sujeitava aos modos das turbas do bairro, que apareciam ali de calção plebeu e perna peluda exposta, de palitinho no dente.
Ainda esbocei protestar com as leis do mercado e do mundo moderno. Mas logo as ostras, completamente fora da ordem de trabalhos, impuseram a questão da poluição geral das águas, que dizimava colónias inteiras. E todos vociferavam contra o exagerado esforço de pesca no aquário, e contra as desleais artes do camaroeiro.
Dispenso-me de relatar tudo quanto foi dito, a gritaria era muita e a desordem ameaçou instalar-se por mais que uma vez. Mas ouvi ainda aludir ao mercado negro de armamentos, pelos vistos já havia emissários na líbia, enquanto não fosse obtido um contrato exclusivo com o pentágono.
Retirei-me das negociações com um aperto na alma, afinal a crise era mais profunda do que imaginar se podia. Procedi a uma reflexão madura durante o resto da semana, e de pouco me serviram os contactos que mantive com a gerência da frutos do mar. Acabei por entregar o caso ao secretário-geral das nações unidas, não me passava pela cabeça que fosse tão radical o desencontro entre comedores e comidos. E lamentei afinal a morte da tia inocência. Quem irira supor que o sossego do mundo dependia assim de mãos tão frágeis e enrugadas.
***Eco de 2002