sexta-feira, 29 de abril de 2016

Catembe

1 - Não entendo, nunca poderei entender! Ainda quando se trata de gente rotinada, ignorante e estúpida, vá que não vá! Mas não tratando-se de gente inteligente e lúcida, como acontece com a palestrante de hoje! 
E no entanto quatro quintos do tempo da palestra são consumidos na exposição do assunto, onde parece não se distinguir o essencial do acessório, onde parece que toda esta gente gosta de se ouvir, e esgota a paciência do auditório, e a tolerância geral e o contributo particular... para chegar ao fim e já não haver lugar para o debate indispensável, a conversa colectiva, a controvérsia fértil e fecunda... É uma pena, se não se desse o caso de ser uma grande porra!
2 - O assunto da palestra é A Propaganda no Cinema do Estado Novo, que deus haja. E a palestrante é uma jovem doutorada pela Universidade Nova de Lisboa. Ilustrada, inteligente e lúcida, coisa rara. Ela contextualiza explanando detalhes do Acto Colonial de 1930, que definia as formas de relacionamento da metrópole com as colónias, no fascismo aparentemente delicodoce que nos coube. E introduz artigos relacionados da Constituição de 1933. Abre luzes sobre o luso-tropicalismo de Gilberto Freire, que adoptou e seguiu os mitos salazaristas do modo português de estar no mundo, de ser colonizador e multirracial e multi-étnico e pluri-continental. Não explica as hesitações e contradições aparentes do regime, que começou por negar as relações inter-raças e acabou a avalizá-las. Portugal foi o maior produtor europeu de mestiços, a maior indústria colonial.
A palestrante mostrou claramente que o império português salazarista foi uma construção ideológica propagandística, sem consistência real nem substância, para além da mó de moinho que pendurou ao pescoço do velho Portugal. Nas suas investigações, ela viu em Londres o documento em que a Inglaterra e a Alemanha, depois da I Guerra, partilhavam as colónias portuguesas. Pois quem vai a construir um império leva uma carta de saque, e os impérios que a não cumprem não existem, e acabam-lhe soterrados nos destroços. 
Ora o império português, criado numa estufa, foi um grande logro colectivo, que só podia acabar na tragédia que o dissolveu: dez mil mortos numa guerra inútil de treze anos, trinta mil estropiados físicos, dezenas de milhares de stressados pós-traumáticos que a pátria ainda hoje desconhece, uma economia metropolitana em ruínas, um milhão de camponeses fugidos a salto para escapar à miséria, cerca de um milhão de retornados de África a regressar em desespero, sem contar aqui as vítimas africanas.
3 - Faria de Almeida era um jovem cineasta de origem moçambicana, que foi bolseiro brilhantíssimo do SNI em Londres, onde aprendeu as técnicas do cinema documentário directo do quotidiano. Em 1965 realizou em Lourenço Marques o filme Catembe. Ficou no Guiness Book como o filme mais cortado de que há memória: dos 120 minutos originais sobraram 45, que acabaram proibidos pela censura. Só em 1985 é que foi por duas vezes mostrado ao público pela Cinemateca de Lisboa. Faria de Almeida abandonou a realização, e acabou em tarefas de circunstância na televisão estatal.
Aqui o que restou do Catembe e ali uma entrevista oportuna com a palestrante.