sábado, 2 de abril de 2016

A história do soldado esquecido

(cont)
Se este leitor tivesse a fraca sorte de fazer parte do júri dum prémio literário, já tinha na manga dois argumentos pesados: lera cuidadosamente o objecto em questão, e tinha fortes razões para defender esta dama. 
Não tinha que inventar nada, com satisfação geral: para o leitor, que não desperdiçara tempo nem dinheiro, nem o conhecimento que um livro traz, mesmo quando é só sofrível; para o editor, que receberia lucros de venda; para o mercado, que funcionara enfim de modo limpo; para o autor, que exultara com o sucesso; para os membros do júri, que não perderam prestígio nem fama; para o patrocinador, que justificaria o panache; para a visão da História, que não saíra enviesada; para a memória da guerra das colónias, porque tinha a seu propósito uma obrinha de levar a sério; para os stress-pós-traumatizados dela, que encontrariam aqui algum consolo e justificação; para a tropa em geral, vista aqui através dum teso militar que a não desmerecia; para o acervo sobre a guerra colonial, que não tem aqui mais um desses contributos pessoalíssimos, irrelevantes e muito dispensáveis, bem haja e muito obrigado; para a tribo dos revolucionários, que não são vistos com palas de mula nem filtros de protecção; nem o subgénero do romance, que não é aqui utilizado em vão; nem a imaginação criadora, que tem aqui exemplo vivo e pujante; nem a trama que é narrada, e tem a complexidade dum labirinto; nem a verosimilhança, que nunca é posta em causa; nem o caldo composto de realidades e ficções, que é aqui uma constante; nem o modo de narrar, que é o mais vulgar e corriqueiro, sem novidades maiores; nem a estrutura narrativa, que não tem aqui inovações idiotas, modernaças e muito precoces; nem os teóricos da escrita criativa, que têm aqui à mão modelo prático. Só a literatura sairia alcunhada disto, e maltratada, mas essa já nem se queixa, já ganhou calo no rabo. 
Depois deste milagre das rosas, comecemos nós pela transcrição dum trecho, exemplar em tudo o que atrás foi dito:
«(...) O relato de Matias aproximava-se do ponto alto que me interessava, o do confronto com Che.
"O Afonso insistiu para que observássemos o aquartelamento durante umas boas horas para compreender a sua organização antes de darmos qualquer passo. À primeira vista parecia ser uma praça forte de pouca importância, pois o que se observava era um conjunto de tendas decrépitas em redor de uma casa tosca, coberta de colmo. Não tendo a imponência que esperava, era no entanto o local que eles estavam e o Afonso localizou o nosso alvo rapidamente: ali estava Che, um homem não tão aprumado na vestimenta como se observaria nas fotografias que correriam o mundo depois da sua morte. Mas era ele, não havia dúvida. Raramente estava só, cada passo que dava era vigiado por membros do MPLA ou cubanos. Mas, no dia seguinte, o Afonso, que continuava a vigiar o local com uns potrentes binóculos, viu Guevara afastar-se um bom bocado do acampamento e enfiar-se na floresta ali próxima."
Matias ainda se entusiasmava ao contar aquele encontro como se fosse a primeira vez. A memória era muito nítida, como confirmavam as descrições exactas de cada passo que Guevara tinha dado até ser apanhado pela dupla.
"O motivo que fizera o Che ir até à floresta era muito prosaico, precisava de se aliviar, doutor. Ali, a floresta era a casa de banho, claro. Aconteceu tudo muito depressa. O Afonso disse que não podíamos perder a oportunidade para chegar até ao homem que procurávamos.Fez-me sinal para me manter em silêncio e pôs a arma pronta a disparar, iniciando em seguida uma corrida rápida até ao local onde Che estava.
Graças à agilidade do militar, Matias, que o seguia muito mais atrás, não presenciou o momento em que Afonso se abeirou de Guevara e o obrigou a pôr as mãos no ar.
"O Afonso era bom naquilo e quando lá cheguei deparei com uma cena bastante caricata: Che de cócoras e de mãos no ar! Este impasse demorou uns instantes até que Guevara disse ao Afonso uma frase que eu nunca esqueci.
"Hombre! Não sei quem és, mas se me queres apanhar tens de me deixar acabar de cagar porque eu não vou sair daqui sem o fazer. Se me queres matar, tem algum respeito e deixa-me vestir depois de acabar isto. (...)
O Afonso não se riu, como me aconteceu, e só pediu que se despachasse porque tinha pressa. (...)"
Afonso, o militar que foi esquecido em Angola depois da independência, é a personagem principal. Depois que ele foi descoberto por uns alemães, escondido numa mina abandonada, um psiquiatra militar da Estrela recebe a missão de ir a Luanda buscá-lo, e de acompanhar em Lisboa a sua reentrada na vida normal. O narrador é, assim, o psiquiatra.
Para além dos factos aduzidos nas conversas com o próprio Afonso, dá-se o caso de a informação mais importante apenas lhe chegar através de antigos companheiros de campanhas. A seu tempo apresentará o psi o relatório médico de que fora encarregado. 
A trama narrativa, as inumeráveis encruzilhadas ficcionadas e o volume das peripécias vividas é surpreendente. Só lendo, meu bom leitor!
Já o registo discursivo é básico, elementar. E constitui a grande fragilidade do trabalho, porque não é este o patamar da linguagem que a literatura exige. Ossos dum ofício estranho a Céu e Silva, que não é um criador de artes literárias... ou contaminação inevitável da carta de jornalista?
Foi Saramago quem disse que "oitenta por cento da literatura é linguagem". Por ser verdade se recorda aqui, a quem o não souber ou já esqueceu.
[O Casteleiro, (logo esse do AO!), está ali na rádio a endeusar o Virgílio Ferreira como o grande autor português, a par do Eça. Pobre Ferreira e pobre Casteleiro! Se o entrevistador pergunta por que razão anda hoje Ferreira tão esquecido... o Casteleiro rumina, culpa o google, responsabiliza o facebook. Esquece-se do tempo, esse juiz da arte, a última instância dela. Porque só a arte vence o tempo. O resto é ignorância a falar.]