O pecado original de tantos poetas que o arriscam é o lirismo confessionalista, lamecha e privativo. Reduzem o leitor à condição de confidente, de confessor e de padre. Porque escrevem um poema como quem vai ao confessionário, trocam um psi pelo poema.
Ora o leitor não é padre, nem tem por força que o ser. Não tem nada que ver (nem a esperar) com as pessoais dores de alma do poeta.
A pecha é muito comum. Vide o caso do próprio Almeida Garrett, dramaturgo e prosador notável, que deixou aí umas folhas caídas, há muito irrelevantes e hoje esquecidas.
Pertencendo à natureza do texto poético a expressão subjectiva dum sujeito enunciador, o que ele não pode ser é o estendal da roupa onde se põem a corar ao sol emoções próprias.
O lirismo poético não pode ser pessoalizado. É o humano lirismo geral das vidas deste mundo, que os homens dele não podem dispensar. Mas não é, nem pode ser, confidência pessoal.
Eis um exemplo positivo. insólito e moderno:
Até que um dia
A vida corria-lhe bem.
Estava muito satisfeito com a profissão
que tinha escolhido:
Narrador omnisciente.*
Era pago por escritores e
ocasionalmente
por personagens emancipadas, proactivas,
curiosas sobre o seu destino.**
Até que um dia...
Não sabia.***
É que não sabia mesmo.
Morreu instantes depois
- logo no parágrafo seguinte -
com os olhos muito abertos de perplexidade.
[Poemas e outros poemas, Pedro Dias de Almeida]
[Pistas de leitura:
*Um narrador omnisciente erigido em sujeito do poema.
**Sobre o seu próprio destino futuro, que ele, enquanto omnisciente, não pode desconhecer.
***Ele não sabe o que devia saber, contradição fatal. Morre ali mesmo, o pobre narrador!]