domingo, 3 de abril de 2016

Juventude

Às primeiras páginas toma-se-lhe o gosto. Depois já se não dispensa, e acaba-se a lamentar que tenha chegado ao fim. A literatura é assim.
O autor nem sequer teve o desplante de lhe chamar romance. E ainda bem, embora o seja, e bom. Demarcou-se da febre que aí vai. Publica-se um mau ensaio a explicar a bomba atómica, uma choraminguice porque alguém morreu, um queixume porque falta a namorada, a nostalgia das saudades dum sertão, e ala moleiro: saiu mais um romance para a banca das frutas, que é onde os fregueses mais passeiam!
É um prazer raro, hoje em dia, encontrar um oásis com palmeiras novas, nestes desertos da literatura. Os próprios críticos dela se foram para parte incerta, deixaram de ter função. E um leitor deixou de ter quaisquer bóias de sinalização.
Aproveitem o livrinho e usufruam-no, disto há pouco, no mercado. Lá dentro vem um romance dos de agora, com setenta e cinco peripécias que o constroem, à maneira de capítulos. Parecem independentes, mas formam um conjunto organizado, dentro duma narrativa em que personagens evoluem e se deixam ver por dentro. Como a vida, que muda e se transforma. E envelhece.
De dimensão variável, os mais deles são textos de página, ou bem menos. Concentrados e concisos, dizem o que há para dizer, sem os antigos pecados da retórica, da acumulação e da prolixidade. Um conto, qualquer novela, um romance dos de agora, já não são a escombreira duma mina, mesmo porque minas já não há. Para longe foram deslocalizadas, e levaram de avião os catrapilos e as gangas.
Por isso é que os textos de hoje não é à página que se mercadejam. É à letra, à sua sílaba, à palavra muitas vezes, desengordurada e estreme. À frase curta, fluente e quase crua, na aparência. É assim a literatura que trouxer arte lá dentro. A de agora.
A versão para português é irrepreensível, com minúsculos reparos.E quando acabarem a leitura dela, façam favor de voltar ao princípio. Depois não digam que ninguém avisou!

Fred Ballinger e Mick Boyle (o compositor reformado e o realizador de cinema ainda activo), dois octogenários hospedados num misto de hotel, casa de saúde e spa de lazer, à vista dos Alpes do Norte italiano. Um ambiente que evoca o sanatório da Montanha Mágica, e que felizmente lhe não segue os passos. Nos excêntricos figurantes reconhecemos Maradona, um actor californiano, a mulheraça duma miss Universo e um folksinger da América.
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«Fred e Mick estão no quarto de Fred. 
Um deles está na poltrona e o outro está sentado à beira da cama a olhar para fora da janela. Está calmo e desiludido. Fred observa-o, consciente do momento difícil que o amigo está a atravessar. 
- Falaste com o produtor?
Mick vira-se e olha para ele.
- Fred, faço este trabalho há demasiado tempo para saber que, com a rejeição da Brenda, este filme nunca se irá fazer.
Silêncio. Mick reflete. Depois desvia o olhar para a mesa de cabeceira de Fred. Observa a fotografia em que Fred está abraçado à mulher, dez anos antes. Idosos, mas felizes. E bonitos.
- A Melanie está tão bonita nessa fotografia.
- Sim, é verdade. Está bonita.
- Sabes, percebi uma coisa, Fred. As pessoas ou são bonitas ou são feias. No meio há as giras.
Fred sorri com amargura. Mick também sorri com amargura. 
- E também estas férias já estão a acabar. O que é que vais fazer depois, Fred?
- O que é que queres que faça? Volto para casa. A rotina do costume.
- Eu não. Eu não sei viver na rotina. Sabes o que é que eu vou fazer, Fred? Vou dedicar-me a outro filme. Tu disseste que as emoções estão sobrevalorizadas, mas é uma parvoíce. As emoções são tudo o que temos.
Mick levanta-se, vai à janela, abre-a, sai à varanda e, com grande simplicidade, coloca um pé na cadeira de vime da varanda, outro no parapeito e deixa-se cair do quarto andar lá para baixo.
Fred apenas tem tempo de se levantar, mas Mick foi suficientemente rápido e imprevisível para não lhe ter dado a possibilidade de fazer nada para o salvar.»