domingo, 19 de outubro de 2014

Falares de homem

« (...) Mas certo é que mata caça quem porfia. O viajante ouviu finalmente uns falares de homem, dobrou uma esquina e entrou nesta ruela, que vai ter a um logradouro sem saída. Entre duas casas brancas, de cimento, logo lhe deram os olhos num majestoso alpendre de granito, de vasta escadaria e corrimão de pedra a que faltam pedaços, alguns a escorregar, mal seguros num ferro. No logradouro ao fundo andam dois homens ocupados, na verdade com ar de poucos amigos, e um cão que está preso a um arame ladra desaustinado. O viajante hesita, enquanto observa a cantaria espessa e regular, as flores do sabugueiro a espreitar por dois janelões, e a carranca de pedra a sair da parede, uma cabeça de carneiro já gasta e puída. Ainda a hesitar sobe a escada e encontra duas portas, aqui viveu o juiz de paz, ali foi em tempos a casa da câmara de Sebadelhe. Isto cogita o viajante, sem certezas nenhumas.
- Que tem que fazer aqui?
A pergunta chega de um dos homens, que avança para o viajante com olhar torvo, e um banco de metal agressivo nas mãos. O viajante, que detesta contendas, fica desamparado. Observa outra vez o empedrado da rua, levanta as mãos em sinal de rendição, dá mais uma mirada às casas do juiz de paz.
- Quer comprar?
- Que ideia a sua! Ando apenas a ver estas vidas antigas, julguei que era pública a rua!
E foi, mas já deixou de ser. O homem fez dela coisa sua, porque tudo o que há nela lhe pertence, menos as casas velhas.
- Você entra por aqui sem dizer nada... sabe-se lá o que anda pelo mundo, hoje em dia!
Por sorte sua, o viajante nunca desejou ser dono duma rua. E, se não tiver a pinta dum celerado vulgar, concorda pelo menos que não basta ver as caras para saber dos corações. Não está em terra sua, por isso concilia, harmoniza, pede desculpas da intrusão.
- Quer beber um copo?
Assim a quente, ainda tomado de brios, o viajante está a pontos de recusar, mas aceita. Porque beber aqui um copo em sociedade é o mesmo que assinar um tratado de paz. Preferia um copo de vinho, mas acaba a engolir um Ricard espúrio, que uma mulher trouxe lá de cima. Sentou-se com o anfitrião no vasto palanquim de cimento que ele construiu por cima da estrada, e ambos conversaram finalmente, com o vale da Ribeirinha em frente.
Nos tempos antigos o homem era jornaleiro, fazia o que calhava, aí no campo. Nunca chegou a trabalhar nas minas, que sempre lhe faltou a terceira classe. Depois andou emigrado em França, a trabalhar nos batimãs, e viveu treze anos num autocarro velho, parado num beco de Champigny. Quando lhe chegou a altura, comprou tudo o que havia nesta rua e reconstruiu a casa onde vive. Faltam-lhe as duas casas velhas, que há dezassete anos não têm habitantes. Espera vir a comprá-las quando os donos baixarem o preço.
- Um dia põe o seu nome na rua!
A sugestão não presta ao homem, que a rua já é dele. Das eleições da Europa pouco ouviu falar, e não lhe importam. E a única revolução que houve na sua vida foi a emigração. Na sua, e na de muita gente.
O sol já declinou atrás do monte, num poente suavíssimo. Mergulhado em emoções contraditórias, pudesse ele acrescentar o que por dizer ficou, e o viajante estaria de acordo com o seu anfitrião. (...)»

[in Portugalmente - Peregrinação da Lapa a Riba-Côa, Âncora Editora, Lx 2012]