« (…) O Bandarra, conforme a alcunha o crismou, pouco mais
foi do que um pobre diabo. Andou aos baldões por este mundo e foi jogado por
ele. E jogado sobretudo por quem mais se demonstrou seu ferrenho amador. Era
uma dessas cabeças atiladas, que às vezes nascem do povo, e vivem aprisionadas
numa condição em que não cabem, sem lhe poderem escapar. De espírito aguçado e
uma invejável memória, cumpria bem ou mal o seu ofício, lia e relia uma bíblia
emprestada, a pontos de lhe saber de cor longas passagens. E do que não sabia
tirava analogias, já discorria como grandíssimo teólogo.
Os marranos, que abundavam no seu mundo, eram uma gente
em cerco desesperado. Mais do que na aflição da miséria, viviam na angústia do
transitório, na incerteza dos haveres, na insegurança das vidas. Ecoavam-lhes
no peito as promessas do Messias, de que lhes falava O Livro, e não tardaram a buscá-las nas concordâncias do Bandarra.
Visionário como todos os profetas, tinha aquele ar de ovelheiro a quem Deus é
bem capaz de confiar os segredos do mundo. Vinham de longe, a consultas,
ouviam-no como a oráculo, alguns o tratavam já como rabino dos seus.
Em Espanha tinham os judeus vivido transes parecidos. E
foi de lá que vieram umas coplas proféticas, duns troveiros visionários, a prometer
a salvação pela mão dum príncipe, que chamavam Encoberto. É de crer que foi a partir delas que o Bandarra começou
a fazer trovas. Ninguém sabe quem as passou a limpo, andavam por aí copiadas à
mão, com letra de cada um. E prometiam aos judeus o Messias, um Encoberto que ainda hoje não veio.
Ninguém as conheceu no seu original, por todas as versões
serem diferentes. E alguma delas foi parar à mão da Inquisição, que não podia
tolerar semelhantes despautérios. Chamou o Bandarra a capítulo, vestiu-lhe o sambenito,
levou-o à procissão dos condenados. Mas perdoou-lhe a fogueira, por não trazer
no rústico semblante qualquer sombra de pecado. O pobre voltou para casa vedado
de fazer trovas, de voltar a ler a bíblia, ou falar dela. Quem sabe se foi
então que acabou a recolher-se na casa do Nogueirão, para se afastar do mundo.
Pois tão bem lhe assentou a lição que ninguém mais o ouviu.
Um dia o Bandarra morreu mas ficaram as trovas, que um
povo já naufragado só nelas guardava esperança. O rei-criança lunático desaparecera
em África e o reino ficara sem cabeça, sujeito ao inimigo de Castela. Só nas trovas havia consolação. Foi por isso que apareceu a primeira edição delas,
pela mão dum fidalgo importante. Para dar esperanças ao povo, pôs-se o Bandarra
a dizer que el-rei um dia havia de voltar, saído do nevoeiro.
Mas o rei não apareceu, em seu lugar vieram os
castelhanos. E a clerezia, que metera o sapateiro num inferno por causa dumas
trovas, começou a realçá-lo nos sermões, a exaltá-lo nos púlpitos. Fizeram-lhe
um mausoléu em pedra lavrada numa igreja de Trancoso, encheram-no de ar e
vento. Um dia expuseram-lhe o retrato na catedral de Lisboa, trataram-no como a
um santo. E logo um outro fidalgo fez nova edição das trovas, agora
acrescentadas de umas outras que se disseram achadas em poder dum tal Pacheco,
da idade do sapateiro, há uns cem anos atrás. Desta vez o Bandarra anunciava e
restauração dos Braganças.
Um século depois ainda apareciam trovas novas, que uns
pedreiros vindos da Galiza foram descobrir na capela-mor da igreja de S. Pedro.
E lá punham o Bandarra a adivinhar as guerras do Napoleão, depois delas terem
vindo.
O importante da história não é o que deixou dito o
sapateiro, mas o que na boca lhe puseram os poderosos, para melhor conduzirem o
rebanho. Primeiro foi messiânico, depois foi sebastianista, e acabou a
adivinhar incertas restaurações. Mas tudo o que o Bandarra fez, e outros
fizeram por ele, foram uns versos de sapateiro remendão. Davam para explicar
tudo, consoante as aflições. Se ele pudesse imaginar o que iam fazer das
trovas, não as contava a ninguém. Ainda hoje enchem barriga a muita gente,
pelos vistos vão pô-las num museu. Que Portugal habituaram-no a charadas e já
não vive sem elas. (…) »