sábado, 25 de outubro de 2014

Lugar do morto

Trabalhavam todos num gabinete ali ao Campo Pequeno, pejado de estiradores e dirigido por um engenheiro dos comboios. Ele era o único Velho do Restelo que há séculos ficara na praia, a protestar contra a insânia. Os outros todos eram retornados que as marés da história tinham arrojado ali à beira-Tejo, e traziam a cabeça atravancada dos destroços das gestas gloriosas, e os olhos cheios de miragens e sertões. Engenheiros avulsos, agentes técnicos, desenhadores, topógrafos, porta-miras e condutores de jipes, eram parte do milhão de expatriados chegados de escantilhão, com uma mão atrás e outra à frente.
Precisavam todos dum barco salva-vidas, para escapar ao naufrágio. E ele surgira com os planos de reactivar a exploração dos ferros da serra do Reboredo, lá para Trás-os-Montes. Os minérios deviam chegar ao complexo de Sines, em vagões ferroviários. De modo que era preciso fazer o que nunca fora feito, uma ligação entre o Pocinho e Vila Franca das Naves, e às linhas que iam para Sul.
Tão náufrago como eles, por tempestades diferentes, eu era para todos o capitão vermelho. Regressado dum exílio preventivo, não tinha profissão certa, nem família regular, nem domicílio, nem direito a uma aspirina. E precisava de matar a fome. Por uns tempos, entre Sines e Moncorvo, fui motorista daqueles técnicos todos.
E foi assim que assisti, em charnecas do Alentejo que não sei onde ficaram, às terraplanagens dum imenso terminal ferroviário. Os besouros de aço tinham tracção dupla, com um motor atrás e outro à frente, e arrastavam a carapaça rente ao solo. Uma vez aberta uma comporta ventral, eram verdadeiros devoradores de terras. Enchiam a barriga, fumegavam paisagem afora, e iam despejá-las lá ao longe.
Coube-me um dia levar a Moncorvo um jovem engenheiro, ordenadíssimo e meticuloso. Dormimos duas noites no Carvalhal, imersos no nevoeiro duma hospedaria clandestina, entre arrepios de frio e paredes greladas de humidade. Mas chegou o fim-de-semana e voltámos a Lisboa.
Nesse tempo o IP2 não existia, nem havia A23. A estrada da Beira seguia há séculos as curvas de nível, e a viagem durava uma eternidade. Mas o homem não gostava da minha condução de aviador e assustou-se. Chegou a Celorico e quis parar na estação, onde ficou à espera dum comboio.
No lugar dele eu tinha feito o mesmo. Para dizer tudo, era o lugar do morto.