sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Morrer outra vez

Para Castaínço fala o soldado três quatro sete noventa e cinco de setenta e um, para a sua querida mãe irmãos tios sobrinhos padrinhos e mais familiares, desejo um feliz natal e um ano novo cheio de prosperidades para a sua noiva mando um abraço cheio de saudades para todos eu estou bem adeus até ao meu regresso!
Assim bisonho e assustado, de coração aos pulos como se estivesse na mata debaixo de fogo, debitou o soldado três quatro sete noventa e cinco de setenta e um a sua mensagem de Natal. A máquina estava ali montada na parada do quartel da Bambadinca, havia um microfone pendurado por cima num tubo de ferro, a engolir o sobressalto das gargantas ali postas a discursar, era só aguentar o avanço lento da bicha que vinha lá do fundo, das traseiras do comando, chegar ali e descarregar a ânsia da alma para a janela daquele bicho esquisito, que não parava de nos mirar a todos por dentro, com aquele olho estático de vidro que nem pestanejava.
O sargento dera ordens para o pessoal se ataviar a preceito, e não aparecer ali com ar de lagarto das furnas, figura normal de qualquer soldado naquela guerra, para não causar más impressões à malta lá do puto. Mas sempre havia gajos que se estavam cagando para as ordens do sargento, e vieram com barretes todos abandalhados, e queixos mal rapados, e aquele ar de múmias desenterradas com grandes olheiras, que fraca imagem haviam de dar da tropa da Bambadinca. Mas o melhor era aviar porque a malta era muita, e os senhores da televisão não estavam habituados ao calor.
Em fundo havia um plano do edifício do comando, assim foram discutidos os preparativos com os técnicos que andavam por ali com bonés de bico de pato, sempre era uma vista mais aconselhável neste marketing da guerra, e sempre se podia mostrar o brasão da companhia desenhado na parede, pois claro que estes símbolos militares têm o seu fascínio, que seria inconveniente desprezar.
E assim veio a televisão a publicar aquela romaria numa noite de Fevereiro, logo depois do telejornal, o Natal passara há muito mas que havíamos de fazer, tão escasso era o tempo e tão numerosa a tropa, mesmo assim só tínhamos ido a uma dúzia de quartéis em cada província ultramarina, que seria de nós se tivéssemos que percorrer aqueles matos todos, nem a televisão fazia outra coisa senão transmitir mensagens de saudade durante o ano inteiro.
E deste modo se viu o senhor director, nessa noite jantando em família, obrigado a mandar a criada calar aqueles bonecos, quando a enfadonha lengalenga se preparava para arrancar. E logo ali na tasca do Hermínio se gerou grande confusão nos clientes a propósito do tema, queria a dona Conceição desligar o aparelho porque estes programas dos soldados coitados lhe davam apertos no coração, e isto muito embora não tivesse nenhum filho na guerra. Mas saiu-lhe a terreiro o Chico Estivador, para dizer que não senhor, ele havia certas coisas que eram duras de se ver, pois com certeza, mas não tendo ela filhos na guerra, outros podia haver que os tivessem, e que além disso o povo não podia fechar os olhos a certas realidades, bem era até para ele que os fosse abrindo. Houve quem não entendesse de que realidades se tratava, e, quando o Chico começou a explicar, veio logo o Hermínio Tranquilo lembrar-lhe que era melhor guardar a língua na caixa, pois não era a primeira vez que por ali apareciam uns tipos de gabardina, que se demoravam a folhear o Diário de Notícias, ele bem desconfiava quem eles eram e não queria complicações na casa. E largou a calar o aparelho.
E assim foi que a dona Matilde, pessoa até compenetrada das suas obrigações de cidadã, à hora de começar aquele penoso desfile desligou iradamente a televisão, porque não podia sofrer aquela torpe manipulação dos sentimentos de cada um, era do que se tratava. E essa foi também a hora a que o abade de Castaínço, refastelado com gravidade no canapé, se lembrou do breviário do dia. Desligou a televisão, aconchegou os pés à braseira por baixo da camilha ruça, e ficou a murmurar a serenidade de seda das páginas divinas, quando uma levantada gritaria lhe chegou da porta. Foi abrir, era a Maria Rita viúva, a quem tinha morrido há semanas um filho nas guerras de África. Vinha trazida por outros dois, embiocada no xaile de merino preto, e da fenda do bioco saltavam dois olhos de lágrimas, se de angústia, se de esperança, não era possível saber.
Que o meu António tinha acabado de ver o irmão na televisão, lá no café, naqueles programas dos soldados, que ele estava mesmo vivo lá no quartel, tal e qual como os outros, e tinha mandado saudades para todos, nem se esquecera dos padrinhos nem dos amigos.
O padre chamou a si toda a serenidade de séculos de claustro, ele próprio em dificuldades para conter a nuvem de tristeza que ali se lhe abateu na alma. Explicou à pobre viúva que não, aquele papel que ela tinha recebido dos comandantes da tropa é que dizia a verdade sobre o filho. Na televisão, o filme passado hoje tinha sido gravado há três ou quatro meses, em Setembro ou Outubro, muito antes do Natal. Nessa altura estava o filho vivo, ele só morrera em Janeiro.
O senhor abade teria razão. A Maria Rita escancarou os queixais, fitaram-se-lhe os olhos donde fugia um estranho sol longínquo, e lá teve que deixar morrer o filho outra vez.