Para Castaínço fala o
soldado três quatro sete noventa e cinco de setenta e um, para a sua querida
mãe irmãos tios sobrinhos padrinhos e mais familiares, desejo um feliz natal e
um ano novo cheio de prosperidades para a sua noiva mando um abraço cheio de
saudades para todos eu estou bem adeus
até ao meu regresso!
Assim
bisonho e assustado, de coração aos pulos como se estivesse na mata debaixo de
fogo, debitou o soldado três quatro sete noventa e cinco de setenta e um a sua
mensagem de Natal. A máquina estava ali montada na parada do quartel da
Bambadinca, havia um microfone pendurado por cima num tubo de ferro, a engolir
o sobressalto das gargantas ali postas a discursar, era só aguentar o avanço
lento da bicha que vinha lá do fundo, das traseiras do comando, chegar ali e
descarregar a ânsia da alma para a janela daquele bicho esquisito, que não
parava de nos mirar a todos por dentro, com aquele olho estático de vidro que nem pestanejava.
O
sargento dera ordens para o pessoal se ataviar a preceito, e não aparecer ali com
ar de lagarto das furnas, figura normal de qualquer soldado naquela guerra,
para não causar más impressões à malta lá do puto. Mas sempre havia gajos que
se estavam cagando para as ordens do sargento, e vieram com barretes todos
abandalhados, e queixos mal rapados, e aquele ar de múmias desenterradas com
grandes olheiras, que fraca imagem haviam de dar da tropa da Bambadinca. Mas o
melhor era aviar porque a malta era muita, e os senhores da televisão não
estavam habituados ao calor.
Em
fundo havia um plano do edifício do comando, assim foram discutidos os
preparativos com os técnicos que andavam por ali com bonés de bico de pato, sempre era
uma vista mais aconselhável neste marketing da guerra, e sempre se podia
mostrar o brasão da companhia desenhado na parede, pois claro que estes
símbolos militares têm o seu fascínio, que seria inconveniente desprezar.
E
assim veio a televisão a publicar aquela romaria numa noite de Fevereiro, logo
depois do telejornal, o Natal passara há muito mas que havíamos de fazer, tão
escasso era o tempo e tão numerosa a tropa, mesmo assim só tínhamos ido a uma
dúzia de quartéis em cada província ultramarina, que seria de nós se tivéssemos
que percorrer aqueles matos todos, nem a televisão fazia outra coisa senão
transmitir mensagens de saudade durante o ano inteiro.
E
deste modo se viu o senhor director, nessa noite jantando em família, obrigado
a mandar a criada calar aqueles bonecos, quando a enfadonha lengalenga se
preparava para arrancar. E logo ali na tasca do Hermínio se gerou grande
confusão nos clientes a propósito do tema, queria a dona Conceição desligar o
aparelho porque estes programas dos soldados coitados lhe davam apertos no
coração, e isto muito embora não tivesse nenhum filho na guerra. Mas saiu-lhe a
terreiro o Chico Estivador, para dizer que não senhor, ele havia certas coisas
que eram duras de se ver, pois com certeza, mas não tendo ela filhos na guerra,
outros podia haver que os tivessem, e que além disso o povo não podia fechar os
olhos a certas realidades, bem era até para ele que os fosse abrindo. Houve
quem não entendesse de que realidades se tratava, e, quando o Chico começou a
explicar, veio logo o Hermínio Tranquilo lembrar-lhe que era melhor guardar a
língua na caixa, pois não era a primeira vez que por ali apareciam uns tipos de
gabardina, que se demoravam a folhear o Diário de Notícias, ele bem desconfiava
quem eles eram e não queria complicações na casa. E largou a calar o aparelho.
E
assim foi que a dona Matilde, pessoa até compenetrada das suas obrigações de
cidadã, à hora de começar aquele penoso desfile desligou iradamente a
televisão, porque não podia sofrer aquela torpe manipulação dos sentimentos de
cada um, era do que se tratava. E essa foi também a hora a que o abade de
Castaínço, refastelado com gravidade no canapé, se lembrou do breviário do dia.
Desligou a televisão, aconchegou os pés à braseira por baixo da camilha ruça, e
ficou a murmurar a serenidade de seda das páginas divinas, quando uma levantada
gritaria lhe chegou da porta. Foi abrir, era a Maria Rita viúva, a quem tinha
morrido há semanas um filho nas guerras de África. Vinha trazida por outros
dois, embiocada no xaile de merino preto, e da fenda do bioco saltavam dois
olhos de lágrimas, se de angústia, se de esperança, não era possível saber.
Que
o meu António tinha acabado de ver o irmão na televisão, lá no café, naqueles
programas dos soldados, que ele estava mesmo vivo lá no quartel, tal e qual
como os outros, e tinha mandado saudades para todos, nem se esquecera dos
padrinhos nem dos amigos.
O
padre chamou a si toda a serenidade de séculos de claustro, ele próprio em
dificuldades para conter a nuvem de tristeza que ali se lhe abateu na alma.
Explicou à pobre viúva que não, aquele papel que ela tinha recebido dos
comandantes da tropa é que dizia a verdade sobre o filho. Na televisão, o filme
passado hoje tinha sido gravado há três ou quatro meses, em Setembro ou Outubro,
muito antes do Natal. Nessa altura estava o filho vivo, ele só morrera em
Janeiro.
O senhor abade teria
razão. A Maria Rita escancarou os queixais, fitaram-se-lhe os olhos donde fugia
um estranho sol longínquo, e lá teve que deixar morrer o filho outra vez.