« (…) Ele há-de conhecer em Valflor o convés dum
marinheiro que aqui houve e o Salazar visitava! Ao Adalbero não escapou a
frescura, que sorriu e logo aponta. É ali por trás daquelas casas, nem conhece
ele outra coisa, se tanto lá trabalhou! Do Salazar é que já não dá razão. Mesmo
que o tivesse visto não o podia diferençar, era um homem como os outros.
O viajante só discorda de Adalberto porque sabe, desta
história, mais do que ele. Ouviu dizer que nos paços do almirante, em verões
antigos, tinham lugar encontros de coração. Mas as damas vinham duas, e o
Salazar era um só. A paixão dele era uma castelã, de sangue azul e modos
adocicados, diplomática e discreta. O nome dela era uma cordilheira, só ele
enchia a página inteira dos assentos. Mas o enlevo que mostrava ao sacripanta
era apenas circunstância.
Já a outra era azougada, uma amazona. Desfolhava-se por
ele e não controlava os impulsos do corpo, que era tão vasto quanto impaciente.
Dizia ela que a vida são dois dias e lá teria razão. Porém ele fazia-se de sonso
e não lhe dava saída, que lhe metia medo a mulheraça. E fazia-lhe lembrar a
Carlota Joaquina.
Quantas vezes casos bicudos da história, como este do
Salazar, encontram explicação assim ao virar da esquina! Isto vai ruminando o
viajante, que foi procurar uns paços de almirante e já os encontrou. Abatidos,
decadentes, a caminhar para a ruína, tão transitórios como as glórias do mundo.
Foi isto um gemido de amazona, ou alguma porta velha que rangeu?!
Quem em tempos conheceu bem estas escadarias foi
Francisca, das Moitas de S. Martinho, se derramou nelas as lágrimas melhores.
Tinha três filhos mas só lhe sobraram dois, que o terceiro levaram-no umas
febres num sertão de África para onde foi à ventura. Um dia o mais novato
andava nuns lameiros, a gadanhar o feno, ali às Águas-Vivas. E lá entrou em
despiques com um farsola, por causa duma gaiata. O resto foi o vinho que o fez.
Veio para casa mais cedo, foi buscar a caçadeira, e pôs-se à espera que o carro
dos bois parasse no meio do povo. Não era o mesmo farsola que vinha a cavalo
nele, mas ele nem reparou. E vindimou-lhe o pai sem o saber, amaldiçoada hora!
A mãe Francisca ateve-se ao almirante, pois a quem… A
justiça era tão longe, a vida era tão madrasta, o seu homem emigrara sem lhe
mandar um tostão… Andou que tempos a caminhar para aqui, por esses montes
abaixo. Num taleiguito à cabeça trazia o melhor que tinha, que era nada. Mas
abrigava no peito uma esperança, nem sabia, de merecer uma atenção do
almirante. O filho apanhou a pena máxima, nunca mais se endireitou. E um dia a
velha Francisca, perdida aquela ilusão, tomou-se do desalento e lá se deixou
morrer. (…)».
[in
Portugalmente – Peregrinação da Lapa a Riba-Côa, Âncora Editora, Lx 2012]