[Manhã de geada na Lapa]
O Porto não acabará sem chuva, mas são três dias e o tempo vai dar para tudo. As gaivotas grazinam nas chaminés, a patrulhar o bairro. Que está mudado, parece-me, enquanto mato as saudades que nunca tive dele. Na loja do rés-do-chão já não lêem o tarot à sombra de imagens pias; agora fazem-se nails de silicone às cores. A vizinha que tanta vez encontrei a escrever na esplanada está nos cuidados continuados da oncolologia, por certo não escreve mais. A tabacaria nova tem uma dona galega, a velida que alva se levantava para ir lavar camisas eno alto, e veio parar aqui. A pastelaria do pão-de-ló de Ovar, despachada e matinal que sempre foi, tem agora um balcão exclusivo para a raspadinha. E a gorda da frutaria expõe cada vez mais fruta. Nas bichas da caixa do Pingo Doce há viúvas que levam sacos de areia, e sardinhas congeladas, e lâminas de gelatina, e chocolates escuros. Deixam de lado embalagens de fisálias, que vieram da Colômbia a oito euros o quilo. Mais barata talvez a folha da coca, mas o mercado é que manda. Na avenida dormem os carvalhos, indiferentes à pressa dos automóveis no semáforo. O autocarro ainda passa, mas mais raro. E o Licas não aparece, desde o dia em que ficou sem o pato de borracha, a melhor prenda que tinha para me dar. O chinês lá continua na esquina, e ao jantar mata-me a fome com um chau-min duns rebentos que subtraiu aos pandas da montanha, pobres deles. Regresso pela praceta. E lembro que já é tempo de plantar na Lapa os agapantos, onde a cascata ressoa, em cachão, fragas abaixo. A mulher do horto já me deu notícia deles.