terça-feira, 11 de novembro de 2014

Cachorros fiéis

Um carro de ferro sempre é outra coisa, di-lo e redi-lo a experiência. Uma noite estava eu parado na ponte da Arrábida, era o último da bicha que um imprevisto causara, lá à frente. Às tantas ouvi um baque na traseira. Mau Maria!
O velho duque tinha lá atrás o espigão do reboque. É um aríete de respeito, e eu nem me dei ao trabalho de sair, o frenesi do mundo que se avenha. Não tardou muito aparece-me à janela um cidadão cordato e pesaroso, que vinha distraído, e coisa e tal. Era o antigo presidente da câmara de Gaia, um tal Meneses. Custou-me a reconhecê-lo. Mas entendi que viesse naufragado nos calotes da câmara, pudera! Entendemo-nos depressa. Ele teve que mudar metade do motor, eu engrenei a primeira e fui à minha vida.
Bem pior passou o duque, numa emboscada que há uns anos lhe fizeram, na 2ª circular da capital. Eram duas da manhã, vinha do aniversário duma gente amiga, no Pátio do Seabra, ali à Ajuda. Por cima do viaduto do relógio tinham organizado um grandíssimo arraial. Cirenes da polícia lá à frente, rotativas dos bombeiros, uma matilha de pronto-socorros, e quinhentos metros de trânsito parado nas três faixas de rodagem. Eu fiquei no fim de todos.
Às tantas senti um choque, e assustou-me um grande estardalhaço. Um meteoro tresmalhado entrou-me pela direita, começou a fatiar-me o duque desde a porta traseira, foi-lhe enterrando cada vez mais os dentes, até chegar ao guarda-lamas da frente e arrancar a roda inteira. 
Era um velho Austin inglês, a cento e tal quilómetros por hora. Fez ricochete para a fila da direita, entrou pelas traseiras dum Renault que estava ali parado e foi bater num jipe à sua frente. Ainda mal-contente ressaltou para fila da esquerda, roçou-se numa carrinha Toyota com um atrelado de cães de caçadores que iam para o Alentejo, e acabou o tal Maestro num destroço de ferrugens amassadas contra o betão do separador central.
O acidentado, um guarda-portão da TAP encharcado em cocaína, já não foi pegar no turno. Uma ambulância levou-o para o hospital e a polícia nem lhe fez o teste do balão. O marginal nunca fez a participação ao seguro. E tiveram que passar dois meses, até que a oficina do C. Santos me devolveu o panzer como novo. Mas lá veio, como os cachorros fiéis.