« (...) Havia tropas
amigas na rua, nos últimos dias era duma evidência transparente que ficaria sem
cabeça quem a expusesse, e por isso Gaspar não compreende, sabe só que as
tropas nunca se movimentam sem ordens, não sabe ainda que nunca saberá donde
tais ordens vieram. Mas vai, porque já não pode recuar. Vai para uma base
militar onde encontra confinada num salão toda a oficialidade, pastoreada pela
tropa alevantada enquanto joga às damas, enquanto dá umas tacadas no bilhar,
enquanto a meia voz comenta o insólito, quem sabe se inesperado, súbito lance.
Gaspar ensaia uma explicação do que está a acontecer, tenta mostrar os limites
da sublevação, procura legitimar-lhe os objectivos. Ainda não sabe que a razão
não desempenha aqui qualquer papel, outros são os motivos que levam os homens a
ver, não o que está, mas o que querem ver, numa revolução. E ele próprio é quem
vê, pela primeira vez, o ódio nos olhos dos camaradas de ontem, o ódio nos
olhos dos companheiros de África de ontem, que lhe chamam traidor e não
entendem, alguns cospem-lhe aos pés e não entendem que se possa desejar outra
coisa, que se pretenda substituir a definitiva rigidez de cadáver dos códigos
deontológicos pelo calor suado e desprezível do povo, não entendem que se possa
trocar esta vazia, mas certa, segurança, pela duvidosa aventura de indefinidas
utopias, por sonhos incertos de transformar o mundo, assim é a tropa, a
fingir-nos a vida para nos interditar o ofício de a criarmos, e eles sem
entenderem que chegou o momento do resgate, e que não o aproveitar será deixar
toda a história a meio. (...)».
[As Aves Levantam Contra o Vento, Quasi Edições, Famalicão, 2007]
[As Aves Levantam Contra o Vento, Quasi Edições, Famalicão, 2007]