Por singelas razões de sanidade mental, há muito que fechei a porta ao exterior. À informação, à
imprensa, à internet. Montei uma tenda no terraço, reconciliei-me com as megeras das gaivotas e ganhei algum sossego.
Porém um dia
destes cedi à cafeína. Logo me constou na rua que um ministro, de entre os pares, pedira a demissão. Ora, a mim, a pátria em lágrimas e o Passos em haraquíri,
sem aquela trabalheira jihadista de lhe cortar o pescoço, sempre me comoveram
altamente. Aquilo era o bom da festa, não o perdia por nada. E foi por essa
razão que decidi activar o sistema de escutas que ali anda, e que em tempos
mandei vir da América. Por então eu tinha crenças na utilidade das tecnologias
modernas, coisa que depois me passou. Mas o gadget é infalível e escapa-lhe muito pouco.
A primeira
intersecção veio de perto. Era uma vizinha ao telefone, a ladrar contra as misérias da cunhada, que é uma cabra. Depois passaram conhecidos do
Salgado, mais que muitos, e ouvi mesmo inconfidências que não ouso aqui trair, dentro do júri dum prémio literário. Por vezes o discurso empastelava, e fazia-me lembrar os hackers sabotadores de que a loira se queixava. Mais que razão tinha, a pobre! Mas ainda ouvi o Crato, a desvendar a um guru o seu ardiloso plano de passar o Ministério à clandestinidade, para conseguir levar a exame os professores contratados. Ao sábado e à sorrelfa, longe do horário das greves. E assim ficar com o Nogueira taco a taco, pois também ele desapareceu do mapa e se clandestinizou, logo que levou à certa os professores, contra a ministra sinistra de há uns anos.
Foi no meio
de tanta algaravia que ouvi falar alemão. Era o Passos que falava com a Merckel, a
queixar-se do poltrão desse ministro que tinha claudicado. E ele não descortinava onde encontrar substituto.
Ora Frau Merckel, a mim, conhece-me de jingeira. Fomos vizinhos há 40 anos, na terra
dela, em Berlim, onde me levaram os ventos duma história generosa. Subíamos para o eléctrico ainda de madrugada, ali num logradouro, cada um à sua vida. Mas éramos jovens e sonhávamos a cores, apesar do
cinzentismo do clima. E a silhueta da Merckel, nessa altura, não era nada daquilo em que
depois se tornou. De maneira que aos domingos praticávamos nudismo numa praia fluvial. E certa noite fomos à Ópera Cómica, ver La fille
mal-gardée. Honni soit, era assim a tradução em língua compreensível do bailado anunciado no cartaz: Die schlecht behütete Tochter.
Para voltar
à fria vaca, oiço a Merckel dar ao Passos o remédio do ministro tão poltrão: era eu a boa chave da questão!
A minha alma ficou parva, resisti a custo ao pânico. Faltava-me agora o
Passos a tocar-me à campainha para fazer de mim ministro! Bloqueei o ferrolho,
pus uns tampões nos ouvidos, cheguei a meter um cartucho na câmara. Mas lá resisti ao frenesi.
Hoje parece que já posso desarmar. Ouvi na escuta que apanharam numa rusga uma megengra qualquer e puseram-na a cantar. Ela escolheu o mal menor e acabou a mandar no ministério.
Oxalá
que amaine esta invernia, já que posso enfim voltar à rua!