Pai Natal
Diz-se que nascer é uma benesse. E assim será. Mas a bênção verdadeira consiste em ser infante no seio dum casalinho português da middle-class. É uma cornucópia de bem-aventuranças bem digna do Pai Natal.
A primeira decisão que os papás tomam, mal o infante se instala nas suas vidas, é deixarem de ser mulher e homem. Abdicam da condição, no bom propósito de se tornarem papás a tempo inteiro.
Há um tempo em que o infante se limita a deglutir, a dormir e a defecar. E os dois papás, enquanto seguem ansiosamente o gráfico dos pesos e medidas, vivem o seu período de exaltação.
Depois o infante começa a gatinhar, começa a gaguejar, ensaia os primeiros gestos de representação. É então que os dois papás, mais a família inteira, e também os amigos que vieram, lhe oferecem o papel de prima-donna e lhe cedem o palco inteiro. Organizam no salão a roda em volta dele e cada um a seu modo o estimula. A mamã pede-lhe um gesto, a tia dá-lhe uma deixa, a avó bate-lhe palminhas à precocidade. E o infante faz o pino, puxa a orelha do gato, deita a linguita de fora, cospe na mão da madrinha. A distância entre o infante e um macaquito de circo reduz-se perigosamente. Mas ganha imenso a alegria do salão e a felicidade colectiva.
O infante já descobriu que está no centro dum mundo onde nada mais existe que o seu egoísmo cruel. E estabelece metodicamente a sua ditadura, em que vai introduzindo invencíveis tácticas de guerrilha. Não tem horas de dormir ou de comer, nem de chegar ou partir, nem de falar ou de ouvir.
O casalinho há muito que anda esfalfado, que não dorme, que não vive. Evita lugares públicos onde se exija alguma compostura, e há muito tempo que trabalha a meio gás. Mas assume esse calvário em função dum projecto de família, e mais que tudo em função do seu projecto de futuro.
Tendo assim sido menino, o infante faz-se criança, e torna-se adolescente, e há-de alcançar um dia a maturidade. Na escola descobriu o telemóvel, conheceu o mp3 dum companheiro, ouviu falar duma nova play-station. E só há boa cara para os papás se eles aceitarem o negócio. Caso contrário não abre a porta do quarto. Depois a cena repete-se por aquela marca de roupa, por um acessório gótico, por um camuflado da guerra do Afeganistão.
Um dia a criança quer ir à discoteca. E os papás, que já não têm vida própria, que têm que trabalhar, que deixaram de ter intimidade, que há muito se não entendem, que padecem de impotência irreversível, pagam a um segurança profissional que a venha buscar a casa, e lha devolva às quatro da manhã.
Os papás já não são uma família. O infante agora só tem mamã, porque o papá foi-se embora. E um dia o adolescente, desinteressado da escola, vai à sua viagem de finalistas, porque no último período fez um esforço que afinal não resultou. A mãe arranja um segundo trabalho, que um só não chega para as encomendas. Além dum carro para poder ir às aulas, ela tem que lhe pagar as propinas na privada, onde o infante se há-de licenciar um dia em Relações Internacionais.