Por erros de muitos e crimes de uns tantos, por ineficiências várias e algumas perversidades, o sistema a que chamaram do "socialismo real" implodiu. O muro de Berlim, bem ou mal a sua metonímia, desabou em 1989. E os povos que viviam para lá dele não manifestaram muito mais do que algum contentamento, eles lá sabem porquê. Rejubilaram muitos, a ocidente, porque o sistema do mal... e a democracia... e a liberdade dos povos...e o futuro, e pátáti, pátátá... Foi um júbilo apressado, em muitos casos ingénuo, e manifestamente exagerado.
Porque a vida floreada dos povos a ocidente, construída após a II Guerra Mundial, floresceu à sombra do muro de Berlim. Os direitos de cidadania dos povos, a protecção social, as condições materiais da vida, a partilha da riqueza produzida, a dignidade alcançada, a democracia do voto, o sindicato, a remuneração digna, o trabalho com direitos, a condição humana respeitada, tudo isso foram conquistas arrancadas ao capitalismo ocidental à sombra da antepara do muro. Sem ele, e sem o medo que ele causava às elites dirigentes ocidentais, nada disso teria acontecido. O muro foi o tapa-vento, que permitiu aos povos ocidentais tomar parte na festa. Uma festa de abundância e de progresso que Portugal cheirou tarde. Só depois do 25 de Abril de 1974, por razões que não carecem aqui de explanação.
O vietname soviético no Afeganistão, o repto fatal da América com a guerra das estrelas, e a insensata corrida aos armamentos e às fantasias do espaço, estavam para além do que a fraca economia do Moscovo comunista podia suportar. E o muro acabou por desabar.
Depois disso, as elites ocidentais já podiam outra vez respirar à vontade. Derrotado o perigo comunista, sem diques e barricadas de protecção, já podiam agora ajustar contas com os respectivos povos, já podiam corrigir a aritmética dos poderes e direitos e igualdades e progressos, que tinham forçadamente partilhado. E foi o que fizeram sem perda de tempo, em favor do seu sossego e do seu lucro: com a liberal e falaciosa redução do papel do estado na vida das sociedades; com a privatização de serviços lucrativos e empresas estatais; com a destruição dos sindicatos de classe; com a anulação de direitos alcançados pela canalha do trabalho; com a flexibilização das leis laborais; com o reforço dos interesses das empresas e grandes corporações; com a globalização; com a desindustrialização; com a deslocalização da produção para regiões onde houvesse trabalho escravo e abundante; com a financeirização da economia; com a preocupação fundamental na criação de dividendos para o accionista; com a desregulamentação bancária; com a desenfreada especulação financeira. Na América foi Reagan quem o fez, na Inglaterra foi a dama de ferro que lhe seguiu as pisadas. E até o papa polaco tem na história o seu papel, e deu o seu óbulo para o peditório. Que isto anda tudo ligado.
Os portugueses chegaram agora ao centro do retrato, e não vão ficar lá muito bem. Nem os gregos, nem os cipriotas, nem os irlandeses, nem os espanhóis, nem os italianos, nem os outros todos, porque há nisto um tempo para cada um.
Pela nossa parte, já temos cá quem trate desse assunto da austeridade geral, porque andámos a viver acima das nossas possibilidades. Já temos a economia e a coesão social esfrangalhadas. Por uma elite (que, ela sim, talvez o tenha feito!), personalizada por Passos e Gaspar e outros serventuários, simples feitores dos senhores da Europa e da finança, os Draghis, os Barrosos, os Lagardes, os Olli Rehns, os banqueiros, os plutocratas, os vários Goldman Sachs e os muitos Citygroups e quejandos. Todos lhes trazem, aos serviçais que cá têm por conta, incitamento e armas, de ameaça e de chantagem e de medo. Até um handicapado, Schäuble, alemão e arrogante, lhes dá ordens e instrucções enquanto vocifera, que é indispensável e urgente reduzir-nos a todos a uma insignificância antiga. Nesses tempos disparavam-se canhões para aniquilar os homens, hoje isso já não é indispensável para desmantelar as sociedades. E a única salvação está na consciência disso.