A avaliar pelo que se vê nos escaparates dessas livrarias, não há por aí cão nem gato que não segregue o seu romance histórico. Uma rainha antiga, alguma cortesã, uma curva qualquer mais escabrosa da História, e lá vai disto! Lá lhes parece que está ali o material à mão, a papinha já feita, não há mais que inventar nem construir. Há mesmo quem nos explique esta crise medonha, na forma dum romance. Os editores agarram no produto e fazem-no render, à sombra das malas-artes da literatura. E a estatística demonstra que muitos leitores caem na esparrela, tal e qual como aos patos acontece.
Ora nem a literatura se ocupa de inventariar e analisar as peripécias da História, nem lhe compete fazê-lo. Que isso é labor de académicos e ensaístas. A literatura não reproduz realidades particulares, inventa mundos mais vastos. Constrói quadros verosímeis, que nunca foram, nem são. E bem poderiam sê-lo. Mas só o são ali, com tudo o que isso implica, no texto literário. Ora isso é uma coisa que dá muito trabalho e rende pouco.
É assim que alguns escribas amolgam a História, defraudam a Literatura, e abusam da ingenuidade dos leitores. A sua única vantagem é afagar-lhes a preguiça, trocar-lhes as partes chatas por um resumo Reader's Digest, em troca duns patacos.
Não é que o romance histórico não exista, com proveito geral e bom exemplo, enquanto género da literatura. E esta obra de Garcia Márquez aí está para o demonstrar. Ocupa-se da figura de Simón José António de la Santisima Trinidad Bolívar y Ponte Palacios y Blanco, o Libertador da América espanhola, e do seu falhado sonho de unidade dos povos da Venezuela, da Colômbia, do Peru, do Equador, da Bolívia, da Guiana e do Panamá, no início do séc. XIX. Utiliza da História as datas, os lugares, a onomástica, os dados biográficos da personalidade do protagonista, e provavelmente as peripécias, percursos e itinerários diacrónicos em que assenta a narrativa. Já a construção da personagem central e das inúmeras figuras que a acompanham, a elaboração da sua densidade humana e psicológica, a teia do seu quotidiano, é um trabalho invejável de ficção narrativa. Dificultada pelas balizas que a História impõe como realidades obrigatórias, muito mais difícil se torna a ficção que a segue a par, e bem mais fácil anda quando marcha sozinha. O resultado é um trabalho de mestre.
Perdidos os sonhos e a fortuna, esgotado o vigor físico e a três passos da morte, acompanhado pelo escravo José Palácios nunca formalmente alforriado, o general parte de Bogotá para Cartagena de las Índias, onde promete embarcar para a Europa. É durante o tempo da viagem que, em sucessivos regressos cuja estrutura se repete, o passado da personagem nos é apresentado.
Morre a caminho do mar, perante "a pressa sem coração do relógio octogonal, desenfreado para o encontro inelutável de 17 de Dezembro, à uma hora e dezassete minutos da sua tarde final".
De forma que, leitor empedernido, se te oferecerem romances históricos que te dispensam de conhecer a História em troca duns patacos, e te dão a ilusão de estares sentado à mesa da literatura, manda-os contar histórias aos netinhos!