sexta-feira, 12 de abril de 2013

O último judeu

Agora judeus já os não há, como os houve antigamente. O que há hoje são uns tipos de franjinhas, a bater com a cabeça na parede. Lá disso anda o mundo todo cheio.
No tempo em que os havia, o caso era muito grave. Eram letrados e médicos, alquimistas e filósofos, e não gostavam de missa. Faziam contas à vida, emprestavam a el-rei, agarravam-se ao trabalho, ensinavam a viver. Ora dinheiro é poder.
Por tudo isso, ou em parte, é que o massacre se deu. Em Lisboa, há uns quinhentos anos, saiu a carnificina da igreja de São Domingos. E durante uns bons três dias aconteceu a sangueira. Quatro, cinco, seis milhares, até não sobrar nenhum.
O que sobrou foram os frades, e é deles bom exemplo o Mário Crespo. Um dominicano sem fardeta a oficiar num ecrã, e a reduzir tudo aquilo a uma obscura questão de racismo e de xenofobia. 
Ora onde há dominicanos sem haver judeus, forçosamente algum teremos que inventar, para lhe fazer o papel. Tem sido assim desde então, ao longo da nossa história, com satisfação geral. E foi assim também que o Sócrates se tornou no último judeu que nós tivemos. 
Não era ele um homem inteligente e esforçado? Era. 
Não foi ele um ministro diligente e patriota? Foi. 
Não conseguiu ele, antes da crise, o mais baixo défice que tivemos (2,9)? É verdade. 
Não lutou ele por melhorar o ensino e a escola pública, para combater a nossa ignorância, com a ministra então sinistra? Assim foi. 
Não introduziu reformas na Segurança Social para a tornar mais sustentada, com o Vieira da Silva? Sem dúvida. 
Não deu ele as primeiras caneladas nos interesses da corporação dos magistrados, para nos livrar dessa nova corte de reizinhos absolutos e de eminências de palha? É verdade, e pagou pela ousadia. 
Não iniciou ele, na economia das energias renováveis, um campo em que alcançámos posições cimeiras? Quem diria, mas assim foi! 
Não abriu com ele, no projecto Magalhães, o campo das novas tecnologias, que alimentam hoje mercados estrangeiros? Basta ver. 
Não foi com ele, e o Mariano Gago, que a universidade pública deu um enorme salto em frente, que nos orgulha ainda hoje? Quem duvida!
Não lutou ele para combater os atavismos da nossa história, e tornar Portugal um país melhor e mais moderno? Como poucos.
Não cometeu ele muitos erros (o Sabor, o vale do Tua, um aeroporto novo, talvez algumas estradas, que outras eram, e ainda são, indispensáveis...)? Acontece com marqueses! 
Não era ele determinado e corajoso, a pontos de parecer um arrogante? Era. 
Não possuía ele os dotes duma oratória invejável? As oposições que o digam. 
Não reduzia ele à sua insignificância os diletantes adversários parlamentares que enfrentava nos debates, e só estavam interessados nas intrigas do poder? É só lembrar. 
Não foi a crise internacional, nascida em 2007 do subprime americano, criadora dessa grande ratoeira das dívidas soberanas na Europa, que levou as instâncias europeias a recomendar em 2009 políticas nacionais contra-cíclicas, como forma adequada de a enfrentar? Só para quem nunca soube isso, ou já não lembra. 
Não foram tais decisões que passo a passo levaram ao plano inclinado dos défices orçamentais, na Europa e em Portugal? É só ir ver. 
Não foi a queda da Grécia que acelerou o descalabro? É ver o filme. 
Não foi a perversidade histérica do rating, e a ganância da finança de Wall Street e da City, que não largou a presa enquanto não fez dobrar os joelhos aos povos da`Europa com as tretas da austeridade? Só o não foi para aqueles que ainda acreditam no Pai Natal. 
Não resistiu Sócrates com inteligência e firmeza, enquanto lhe foi possível, ao fatal recurso à troica? Está escrito, gravado, documentado. 
Não foi Sócrates brindado, desde o primeiro momento, com a calúnia decadente da panasquice? Mentiroso compulsivo? Autocrata? Intratável? Incapaz de criar consensos? Corrupto? Traficante de negócios e influências que nunca ninguém provou? Conspirador em escutas contra a República, que vieram a revelar-se exactamente ao contrário? Violador das liberdades da pátria? Controlador de jornais? Receptador de envelopes castanhos e caixas de robalos? 
Não foi Sócrates, em pessoa, o grande inimigo público, a causa de todo o mal?
Não foi Sócrates o político português mais odiado, numa cena que já se não vivia desde o Marquês de Pombal?
Não foi o mesmo Marquês totalmente ostracizado, depois que lhe faltou o apoio dum rei morto, e chegou uma rainha esparvoada, que entregou o país à Viradeira?  
Não foi Sócrates perseguido, execrado, estorrado em lume brando, por uma oligarquia de pulhas e os seus sabujos dos media, durante os seis anos de governo? 
Não foi Sócrates o último judeu da nossa história? 
Muitos portugueses acreditaram que sim, porque o ouviram dizer a uns dominicanos que aí andam. Uns de fardeta, que lhes está no sangue, na natureza e na classe. Foram sempre o que hoje são. E outros sem farda, futricas, como é o caso do Crespo, da esquerdalha geral, e das múmias do comité central. Todos eles em conjunto o levaram à fogueira.
Depois foderam-se todos, isso é claro! E Portugal também se fodeu com eles, o que é mau. Não é esta a vez primeira! Nem segunda!