Este pensador-cronista só se distingue de outros mixordeiros que aí andam, porque o seu caso particular é de ressaca. Escreve sobre o país, opina sobre a história dele, mas não distingue nela os séculos. Amalgama e ensaca o 16, e o 17, e o 18. detém-se no 19, alonga-se no 20, especula sobre o 21, e só pára no dia 4 de Outubro que aí vem. Os servicinhos que ele presta a quem lhes paga são iguais. Puta que os pariu!
«Na ponta da Europa, isolado pela ameaça da Espanha, Portugal tomou sempre como exemplo os países do Norte e foi nesses países que procurou o que devia ser. A política portuguesa copiou a política francesa, o pensamento copiou o pensamento francês e, em grosso, a literatura francesa.
O que nós, no fundo, queríamos ser era um modelo do que se chamava um país próspero e ordeiro, como Paris nos dizia que fôssemos. Havia, no entanto, uma pequena dificuldade: não tínhamos dinheiro, excepto o que até ao fim do século XIX nos vinha do Brasil, o que pedíamos emprestado à banca internacional e as remessas da emigração. Quando a Ditadura caiu, o cidadão comum não
pensava em África (e muito menos no Império), pensava nos salários da Alemanha, no Estado social da Suécia, na suavidade fiscal do Luxemburgo e no parlamentarismo da última república que De Gaulle higienicamente eliminara.
Os fundos de Bruxelas atenuaram durante 30 anos de alguma tranquilidade e progresso a insatisfação indígena, enquanto pelo meio o “cavaquismo” na sua língua-de-trapos proclamava falsamente que Portugal “estava na moda” ou no “pelotão da frente”. Mas, retórica à parte, o país não crescia e continuava longe da modernidade, da riqueza e da independência mítica com que os portugueses
sonhavam desde o princípio de Novecentos. À superfície, a imitação do modelo europeu ia enganando os mais crédulos, mas não enganava quem não ignorava a verdadeira situação do país. O castelo de cartas da nossa tão gabada democracia não aguentaria o menor solavanco.
E o solavanco veio em 2008-2010, mostrando a miserável realidade das coisas, como já mostrara em 1807, com a invasão francesa e o fim do monopólio comercial com o Brasil; e em 1890-93, com o ultimato dos credores. Os portugueses foram outra vez separados das suas fantasias. Só que uma parte deles não desistiu de uma ilusão de séculos e continuou a imaginar que o desastre era a obra de forças maléficas, que a salvífica intervenção do povo iria liquidar. Sem um tostão e com muita propaganda, andam ainda por aí e gozam de uma certa respeitabilidade. Mas nunca mudarão nada, como não
mudaram os liberais, nem os republicanos, nem a extrema-esquerda em 1975. O Portugal mágico de felicidade e de justiça só vive no fanatismo deles. Ganhem ou não ganhem em 4 de Outubro, o destino deles (como o nosso) não será agradável.»
[VPV, PÚBLICO]