quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Rigor mortis

« (...) Toda a gente se afadigava a construir caixotes. (...) Quanto mais ricas eram as pessoas, tanto maiores os caixotes que faziam. (...) Dentro destes caixotes metiam-se salões e quartos inteiros, sofás, mesas, guarda-fatos, cozinhas e frigoríficos, cómodas e cadeirões, quadros, carpetes, candelabros, porcelanas, roupas de cama e de mesa, peças de vestuário, tapeçarias e vasos, até mesmo flores artificiais (vi-as com os meus próprios olhos), todo o lixo monstruoso e interminável que atulha as casas da classe média. Nos caixotes metiam-se estatuetas, conchas, bolas de vidro, vasos de flores, lagartos empalhados, uma miniatura em metal da catedral de Milão, trazida de Itália, cartas! - cartas e fotografias, fotografias de casamento nas suas molduras douradas, todas as fotografias das crianças, e nesta foi a primeira vez que ele se sentou, e aqui a primeira vez que ele disse dá-dá, e aqui está ele com um chupa-chupa, e aqui com a avó - tudo, tudo mesmo, porque esta caixa de garrafas de vinho, este pacote de macarrão que eu pus de lado quando começou o tiroteio, e depois a cana de pesca, as agulhas do croché - a minha lã! - a minha espingarda, os cubos coloridos do Totó, pássaros, amendoins, o aspirador e o quebra-nozes têm de caber, é o que é, têm de caber e hão-de caber, e cabem, por isso tudo o que deixaremos ficar será o chão vazio, as paredes nuas, despidas. Só resta fechar a porta à chave, fazer paragem na avenida a caminho do aeroporto e atirar as chaves para o oceano. (...)
Eu nunca vira uma cidade assim em parte nenhuma do mundo, e talvez não volte a ver nada que se assemelhe. Existiu durante meses, e de súbito começou a desaparecer. Ou melhor, bairro após bairro, foi levada de camião para o porto. Agora espalhava-se à beira-mar, iluminada à noite pelas lanternas do porto e pelo clarão das luzes dos navios ancorados. (...) Mais tarde, quando a situação na cidade de pedra já tinha piorado muito e nós, o seu punhado de habitantes, esperávamos como fatalistas pelo dia da destruição, a cidade de madeira fez-se ao mar. (...) Isso aconteceu subitamente, como se embarcações de piratas tivessem aportado, pilhado um tesouro valioso e escapado com ele. (...) Deixei-me ficar na praia com alguns soldados angolanos e uma pequena multidão de crianças negras maltrapilhas e enregeladas. "Tiraram-nos tudo", disse um dos soldados sem azedume, e voltou-se para cortar um ananás, porque esse fruto era então o nosso único alimento. (...) Ali de pé, encantado com a ideia de que Angola lhe pertencia, disparou uma descarga inteira da sua espingarda automática para o ar. (...)
E agora a cidade de madeira navegava num Atlântico varrido por ondas violentas. Num ponto do oceano, deu-se a separação da cidade, e uma parte, a maior, dirigiu-se para Lisboa, uma outra para o Rio de Janeiro e a terceira foi para a cidade do Cabo. (...)
A cidade nómada sem telhados nem paredes, a cidade dos refugiados à volta do aeroporto, foi gradualmente desaparecendo. (...) Agora partiam vários aviões por dia - franceses, portugueses, russos e italianos. (...) Isto foi no início de Outubro. De dia para dia a cidade tornava-se cada vez mais deserta. (...) Cada vez mais lojistas fechavam os seu estabelecimentos. (...) Agora Luanda era a única cidade do mundo sem polícia. (...) Todos os bombeiros se foram embora! (...) Todos os lixeiros se foram embora! (...)
Os cães ainda estavam vivos. Eram animais de estimação abandonados pelos donos. Viam-se cães de todas as raças mais caras, boxers, buldogues, galgos, dobermanns, dachshunds, airedales, spaniels, até mesmo terriers escoceses e grand-danois, pugs e caniches. (...) Enquanto o exército português se manteve em Angola, os cães reuniam-se todas as manhãs na praça em frente ao quartel-general, e as sentinelas davam-lhes latas de rações de combate da NATO. Mais tarde, a matilha bem alimentada ia para o relvado macio e húmido dos jardins do Palácio do Governo. Começavam então uma surpreendente orgia sexual em massa, uma loucura excitada e infatigável, perseguindo-se e derrubando-se uns aos outros até à exaustão total. (...)
Quando o exército se foi embora, os cães começaram a passar fome e a emagrecer. (...) Um dia desapareceram. (...) Se foram para Norte, deram com a FNLA. Se foram para Sul, deram com a UNITA. (...) Depois do êxodo dos cães, a cidade caiu em rigor mortis. Por isso decidi ir para a linha da frente.»
[Mais um dia de vida - Angola 1975, Kapuscinski]