(...) Há mil anos a Holanda era um pântano. Um quinto do território que o país tem hoje estava debaixo de água, encurralado entre o mar do Norte e a boca de dois rios, o Reno vindo da Alemanha e o Mosa de França. Ambos formam um delta a Leste dos Países-Baixos, chegando ao mar através dum labirinto.
Não era um lugar bom para alguém viver, nem vivia, salvo uns quantos pescadores. Mas isso foi uma sorte, porque o feudalismo não criou raízes na região. Enquanto no resto da Europa os camponeses viviam em semi-escravidão, ao serviço de fidalguias, na Holanda eles eram donos de si próprios. Pescavam, plantavam, vendiam e compravam por sua própria conta. Não é que não houvesse nobres, donos de terras maiores. Mas o modelo feudal de trabalhar a terra em troca de comida não seguiu a norma. E uma boa parte do trabalho consistia em transformar um pântano num país, roubando terras ao mar. Isso exigia um enorme trabalho colectivo, e os holandeses aprenderam a unir-se para domar a natureza. Construíram diques e canais para drenar as terras, e moinhos para bombear as águas. Ficaram ecos disso em van Dam, em van Dick, em Roterdam, em Amsterdam...
Em vez de feudos enormes, havia propriedades divididas entre os homens que ajudaram a tirá-las debaixo de água. Em vez do trabalho em troca de protecção e alimento, era trabalho em troca de salário. E séculos destas práticas colectivas formaram um carácter democrático e humanista. Com um efeito muito peculiar, que foi a criação dum comércio vivo. Enquanto no resto da Europa a circulação de dinheiro era uma miragem, porque os povos o não tinham, nos Países Baixos ela era o centro da economia.
Nos alvores do Renascimento europeu, a Holanda ia na frente, no que respeita a uma economia moderna. A pesca já era industrial nos anos de 1500. Os barcos passavam dois meses no alto mar, com companhas de 20 a 30 homens. Pescavam ininterruptamente e armazenavam o peixe em barricas salgadas. Em 1560 existiam 400 desses barcos-fábrica, a maior parte deles propriedade de investidores urbanos, estranhos a actividades piscatórias.
A agricultura seguiu caminhos similares. Os holandeses importavam cereais, mas deixavam a terra para produtos de maior valia, como o cânhamo das velas dos navios, o lúpulo da cerveja, o linho dos vestidos, e muito mais tarde o tabaco e as tulipas. Em 1595, Amsterdam já controlava um volume de comércio maior que o da França e Inglaterra juntas. Mas ainda não tinha chegado a hora da Holanda, porque o comércio mais lucrativo de então - as especiarias orientais directamente na origem para revender na Europa - estava nas mãos dos dois países ibéricos, entretanto unidos sob a Coroa espanhola.
Não faltavam marinheiros holandeses nas armadas portuguesas. E um deles, van Linschoten, depois de nove anos nas caravelas, produziu um livro em que relatava o know-how acumulado pelos portugueses durante um século de navegações: rotas, ventos, mapas dos melhores lugares de comércio, tabelas de preços, meios de compra a disponibilizar...
O Relato duma Viagem pelas Navegações dos Portugueses no Oriente veio a público em 1596. Em 1600 já havia seis empresas na Holanda a operar navios mercantes para a Índia, isto é, seis "Companhias das Índias". O Relato chegou a Inglaterra, que em 1600 fundou também a sua Companhia. A corrida às especiarias começara.
O problema era o dinheiro para financiar as expedições. A fórmula portuguesa, centralizada na Coroa, que consistia em reunir banqueiros e contrair empréstimos, não era a mais eficaz e tentadora. Dos 22 barcos que tinham saído da Holanda para as Índias em 1598, só 12 regressaram. A solução era reduzir o risco da empreitada, integrando não apenas um ou dois grandes investidores, mas centenas ou milhares de participantes. Se um navio se perdesse, cada um perderia só um pouco.
O governo uniu as seis "Companhias da Índias" já existentes numa grande empresa estatal e convidou os holandeses a tomarem parte na Companhia Unida Holandesa das Índias Orientais. Isso significava dividir a empresa em partes e vendê-las. Exactamente 1143 holandeses compraram partes no mercado.
A guerra no mar com os navios ibéricos foi feroz, já que eles não queriam perder o monopólio. E tempos houve em que os maiores lucros da "Companhia das Índias Orientais" provinham mais do corso do que do comércio. Além disso a inexistência de entrepostos comerciais no Índico, há muito ocupado pelos portugueses, dificultava o comércio. Por isso os holandeses foram fixar-se mais a Leste, no arquipélago da Indonésia. Os habitantes da região de Banda não gostaram e reagiram à invasão. Mas a resposta do capitão e director da Companhia, Jan Pieterson Coen (e a que é que soa este apelido, se não for a judeu sefardita!), foi fulminante. Contratou mercenários do Japão para matar bandaneses. Havia 15 mil habitantes em Banda, quando os holandeses lá chegaram. Quinze anos depois restavam seiscentos.
Depois de garantir a presença na Indonésia, os holandeses apoderaram-se de algumas posições dos portugueses na Índia e foram ganhando terreno. A empresa ganhou viabilidade, e a Companhia tornou-se o maior fornecedor de especiarias para a Europa. Em 1670 já ela dispunha dum exército particular de 30 mil soldados e 200 navios. Ao longo do séc. XVII, mandaria 1770 navios para o Oriente, enquanto a Coroa portuguesa mandara 371; cem anos depois eram 2950 contra 196.
[Adaptado de CRASH, A. Versignassi]