« (...) Nós não quisemos esta guerra! - insiste Ndozi. Mas o Holden Roberto atacou do Norte e o Jonas Savimbi do Sul. Este país está em guerra há 500 anos, desde que os portugueses chegaram. Eles precisavam de escravos para o tráfico, para exportar para o Brasil, para as Caraíbas e para o outro lado do mar em geral. De toda a África, Angola foi a região que maior número de escravos forneceu para esses países. Por isso é que chamam ao nosso país a Mãe Negra do Novo Mundo. Metade dos camponeses brasileiros, cubanos e dominicanos descende de angolanos. Esta terra foi em tempos um país populoso, estabelecido, e depois esvaziou-se como se tivesse havido uma praga. Angola continuou deserta até aos dias de hoje. (...) As guerras de escravos continuaram durante trezentos anos ou mais. Era um bom negócio para os nossos chefes. As tribos mais fortes atacavam as mais fracas, faziam prisioneiros e punham-nos à venda. O preço dum escravo era determinado pela qualidade dos seus dentes. Eles arrancavam os dentes ou limavam-nos com pedras, para terem um valor de mercado inferior. (...) De geração em geração, as tribos viviam no receio umas das outras, viviam no ódio. (...)
Mas ali, no quartel-general do estado maior em Pretória, mais tarde em Vinduque, e finalmente no quartel-general da frente em Tsumeb, tudo estava exacta e devidamente pensado. (...) Nome da operação: Orange. Objectivo da operação: ocupar Luanda até 10 de Novembro de 1975 (às 18 horas desse dia, segundo os acordos de Alvor, as últimas unidades portuguesas deviam deixar Angola). No dia seguinte anunciar a independência do pais, com a passagem do poder para as mãos do governo de coligação FNLA/UNITA. (...)
Regressei num camião que transportava soldados portugueses. Eram tropas num total estado de dissolução. Tinham barba comprida e não usavam bonés nem cinto. Vendiam as suas rações no mercado negro e arrombavam carros. Tinham ordens para se manterem neutros, não dispararem, não se envolverem.Estavam a carregar os navios com tudo. A última unidade partiria daí a uma semana. (...)
E se o auxílio não chegar a tempo? O ataque a Luanda. Quem entrará primeiro? Os do Sul ou a FNLA? A FNLA é um exército cruel. Pratica o canibalismo. Até há alguns dias eu não acreditava nisso. (...) Um dia antes Lucala fora reconquistada a uma unidade da FNLA que se retirou para Samba Caju, uma cidade a 70 quilómetros para Norte. Os setenta quilómetros constituíam um espectáculo horrível. Ao longo da estrada, através desta região densamente povoada, não havia uma só pessoa com vida ou uma só casa. O exército em retirada destruíra todos os sinais de vida. Cabeças de mulher tinham sido atiradas para a erva das bermas da estrada. Havia cadáveres com o coração e os fígados cortados. Metade do tempo permaneci de olhos fechados. (...)
Na segunda-feira a guarnição portuguesa partiu de navio. O último pelotão subiu a prancha de embarque nessa manhã. Eu conhecia alguns oficiais que estavam de partida e fui despedir-me deles. Os angolanos queriam que eles se fossem embora tão depressa quanto possível. Depois de anos de guerra colonial, não podia haver compreensão nem simpatia entre os dois lados. Mas eu tinha uma visão diferente. Os angolanos tinham uma grande dívida de gratidão para com muitos, embora não todos, oficiais portugueses. Souberam comportar-se com lealdade. Eu mesmo lhes devia muito. Também nunca atacaram os cubanos, embora as primeiras pessoas de Havana tivessem chegado quando Angola era ainda formalmente território português. (...)»
[Mais um dia de vida - Angola 1975, Kapuscinski]