segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Sebastianismo 2

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(…) «O mito sebastianista, como tentaremos demonstrar, reside num processo alucinatório da consciência de alguns portugueses (posteriormente elevado a parte integrante da história colectiva de Portugal), sobretudo dos seus principais criadores e seguidores no séc. XVII [nomeadamente, D. João de Castro (neto), Frei Sebastião de Paiva e Padre António Vieira], face a condições sociais e políticas totalmente adversas (decapitação da quase totalidade da nobreza; morte ou desaparecimento do rei; perda da independência; humilhação patriótica pela passagem do Império para mãos castelhanas), reunindo ou cruzando três mitos pré-existentes – o mito celta do Rei Artur; o mito milenarista cristão do abade Joaquim de Fiori e os mitos d’O Encoberto e do Quinto Império registados nas Trovas de Bandarra.
O mito sebastianista, como processo alucinatório, instaurador duma verdade auto-referente, base da narrativa mítica sobre el-rei D. Sebastião, opera a suspensão do tempo histórico cronológico, ou desqualifica-o ontologicamente como tempo fraco ou de decadência (o real sensível dado à percepção ou à compreensão da razão), substituindo-o por um tempo mítico, meta e trans-histórico, que a todo o momento pode ritualmente ser activado, simbolizado na inscrição acrónica com que Fernando Pessoa encerra o livro Mensagem: «É a Hora!»
Porém, como alucinação mental e, posteriormente, como narrativa mítica, o sebastianismo não corresponde a uma total falsidade, como pensava António Sérgio. De outro modo, estatui-se como uma criação colectiva, onírica (sonho diurno, “imaginal”, no dizer de José Marinho), delirante, enquanto resultado de uma alucinação inicial, correspondente a um profundo mal-estar dos portugueses que não encontram explicação racional (justificação argumentativa lógica, objectiva e necessária) para o permanente estado económico de falência e de insucesso social a que as elites políticas têm conduzido Portugal desde o séc. XVII, projectando esta explicação, de um modo alucinatório e delirante, para a ordem da Providência divina e do messianismo, isto é, para a esfera do sagrado. (…)
Nesse sentido, o sebastianismo, como o define magistralmente Eduardo Lourenço, constitui o «máximo de existência irrealista» de Portugal, mas também o «máximo de coincidência com o nosso ser profundo», já que representa «a consciência delirada de uma fraqueza nacional, de uma carência, e essa carência é real». (O Labirinto da Saudade, 1978, pág. 24). (…) [Pág. 12/13, sublinhados meus]

Nota 1 – A primeira coisa que qualquer “pensador” tem que resolver é a questão formal do discurso e a sua transparência expositiva. Ninguém transmitirá qualquer ideia com clareza, usando um discurso ‘embrulhado’, de frase quilométrica, a desdobrar-se num labirinto de atalhos subordinados, onde o fio do entendimento de qualquer leitor naufraga. A frase longa pode ser um recurso de grande valia significante, em casos específicos da ficção literária (o Saramago original que o diga!). No caso do texto expositivo, não-literário, é uma pecha fatal (E. Lourenço que o ateste!).
Nota 2 – Os alçapões e as contradições dos nossos pensadores sobre o tema depressa se manifestam:
- o mito nasce dum processo alucinatório da consciência de alguns portugueses, mormente os seus criadores e seguidores;
- o mito instaura uma outra verdade, opera a suspensão do tempo histórico, substitui-o por um tempo mítico;
- mas afinal o mito acaba sendo uma criação colectiva;
- por uma alucinação, o mito transfere a explicação duma realidade insuportável para o divino, para o messiânico, para o sagrado;
- essa carência insuportável é real;
- o sebastianismo não corresponde a uma total falsidade, como pensava António Sérgio;
- está à vista que o mito é uma armadilha, uma alucinação, um engano, um tapa-olhos, um capote de toureiro, que certas elites manuseiam.
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