segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Periférica

Acabei de empacotar uns livros e dos destroços da estante saiu-me a Periférica. Uns cadernos de cultura e crítica, editados há uns anos por uma redacção de jovens bandeirantes, sediada no quartel dos bombeiros de Vilarelho. Uma aldeia transmontana, para quem não souber. Quando a descobri um dia na livraria Latina fiquei-lhe rendido até à adicção.
Ao Rentes de Carvalho estava ali atribuído o papel de pontífice, de horas em quando deixava a sua marca. Eu não o conhecia, mas fazia dele uma imagem maciça e impositiva, um Alexandre Herculano de hoje, distante como ele, que os deuses me perdoem!
As trabalheiras de fundo saíam das mãos dum grupo com formações variadas. E foi para mim uma coisa de enigma, compreender donde saía um tal saber e a sua voz: aquela desenvoltura de pensamento, a criatividade sem concessões ao vulgo, o discurso de tiro tenso e certeiro, a ousadia distanciada do sarcasmo, o bálsamo da boa iconoclastia. A Periférica era o oposto do Portugal erudito, magistral e encartado.
Mais tarde entendi melhor. O carácter marginal e remoto da publicação, cuja redacção não frequentava capelas nem usava opas de confraria, era, nem mais nem menos, o selo da sua garantia. Independente da bolsa de patrocinadores, do vulto de académicos avalistas, dos fumos de incenso e mofo de que o poder se alimenta e com que nos corrói. Tudo foi sempre assim em Portugal, há muito tempo; a única verdadeira voz é a marginal.
Quando a revista acabou, ficou-lhe no lugar uma cratera que ainda hoje lá está.