Vivia na Casa da Prebenda, um condado no centro da cidade. Nessa altura aquilo era para mim uma casa muito grande. Só muitos anos mais tarde, numas escavações que a vida trouxe e meteram muitos livros, muito tempo, algum trabalho mental e muita música, eu viria a descobrir-lhe o justo significado.
O nome da grande cabra era uma cordilheira, só ele enchia a folha inteira dos assentos. E tinha em casa uma dúzia de gatos, felpudos, exóticos, arraçados. Alimentava-os a pescada sem espinhas, o melhor peixe que a criadagem trazia do mercado. Servia lá em casa a minha tia, uma criatura doce que foi parar ao Brasil depois de se ter casado, à procura duma vida. A tia tinha por mim uma grande paixão. E sempre que podia enchia-me de mimos e ajudou-me a crescer.
Um dia apanhei a camioneta pela mão da minha mãe, que foi levar à Prebenda um cabaz de morcelas curadas pela fumarada. E tão bem curadas eram que a grande cabra guardou-as no automóvel, meteu os pés ao caminho e foi levá-las à Checoslováquia, para regalo dum filho que lá vivia e era primeiro-secretário da embaixada. Foi assim que dormi uma noite num quarto esconso do sótão da Casa da Prebenda, ao cimo duma escadaria interminável. E nunca mais me saiu do ouvido o sussurrar nocturno das folhas das magnólias e das japoneiras que restolhavam na brisa.
Quando o marido morreu, trasladou-o para o cemitério da aldeia, ainda hoje lá está, no gavetão dum jazigo da família. Deixou-lhe em cima um bouquet de tulipas amarelas, e duas lágrimas numa pétala delas.
Muitos anos depois chegou a revolução e a agitação que ela trouxe. Eu aproveitei a primavera, peguei na mão dos dois filhos, e fui com eles à aldeia, ver as flores das macieiras. Ao sol da tarde, andavam os garotos por ali a fazer poços no chão, em correrias com os dois cachorros. Foi então que ela chegou, como às vezes fazia de visita. Olha para mim com ar inquisidor, o ar de quem pede contas, e pergunta: - São cá da casa aqueles dois cachorros?! - Eu fiquei encabulado, respondi-lhe que sim, alguns minutos depois percebi tudo. E finalmente apaguei-a do mapa.