quinta-feira, 5 de maio de 2016

Mala-pata

Contava este leitor com uma epifania, quando não ia pela estrada de Damasco! Assim foi que levou o livrinho na viagem e leu boa parte dele. Mas chegou apressado ao seu destino e esqueceu-o no banco. 
Não foi parar aos perdidos e achados porque o povo afinal gosta de ler. E o que podia ter sido uma boa novidade, era antes um sinal de mala-pata. Comprou outro na Latina, e quando voltou a casa tinha-o lido até ao fim.
João Ricardo Pedro já nos presenteara há tempos com um belíssimo romance. Tão belíssimo como inesperado. A coisa foi celebrada, e premiada, e traduzida. E talvez lhe tenha subido à cabeça, ou não teve artes de a repetir agora. 
O romancinho faz uso dos vastos recursos das artes literárias: a linguagem que lhes é própria, a frase longa e a curta, a repetição,  a enumeração significante, uma imaginação criadora fértil, quando não galopante. O narrador interpela o narratário, as personagens defrontam-se fora da trama narrativa, o próprio autor chega a invectivar o leitor, sinais de modernidade. Mas o romancinho é  excessivo em tudo, ao ponto de resultar desconchavado e perder afinal o sentido global.
É daqui que tudo parte:
"A 11 de Setembro de 1985, pelas 18 horas e 37 minutos, no troço de via única que liga a estação de Nelas ao apeadeiro de Alcafache, deu-se a colisão de dois comboios - o Sud Express, que aprtira da estação de Campanhã com dezassete minutos de atraso, e o Regional, proveniente da Guarda. Números oficiais referem 49 mortos e sessenta e quatro desaparecidos. Segundo os testemunhos de vários envolvidos nas operações de salvamento, é provável que tenham morrido cerca de 150 pessoas. É considerado o pior desastre da história dos Caminhos-de-Ferro Portugueses. 
Entre os passageiros do Sud Express  encontravam-se duas pessoas minhas conhecidas - uma sobreviveu, a outra não. Em 1985 nada as unia, para além da circunstância de viajarem no mesmo comboio, com destino a Paris.
Por mais que procure, nenhuma delas poderá ser encontrada nas páginas deste livro, mas as páginas deste livro não existiriam sem elas. Quanto ao resto, é tudo inventado."
Lá para o fim:
"Querido leitor, prometo-te desde já que esta é a última vez que te interpelo nestes termos. Na verdade, detesto fazê-lo. Porque o faço, então? Para te lembrar que deste lado está um homem doente, e que este livro que seguras nas mãos é apenas uma das muitas manifestações da sua doença. Se ainda guardas alguma expectativa a respeito das páginas que te restam, apelo à tua boa vontade, faz uma de duas coisas: deita fora as expectativas ou deita fora o livro. (...)".
Quanto ao enredo, só lendo. Mas a insânia que atingiu as nossas vidas não poupa a literatura. É forte pena!