Em 1983 (um tempo em que os animais ainda falavam no cinema europeu), Fellini realizou o filme E la nave va, traduzido por O Navio.
Dentro dele, em 1914, um vasto grupo de representantes das artes líricas musicais italianas vai realizar um funeral ao largo da ilha de Erimo: a dispersão das cinzas da defunta diva Edmea Tetua, a maior cantora de ópera de Itália, a voz duma deusa. Entre os passageiros vai o seu admirador arquiduque de Herzog, uma alteza do império austro-húngaro. Nem lá faltam ecos do mítico rinoceronte tratado por um turco, o tal que veio do sertão das arábias e o venturoso rei D.Manuel I mandou ao papa de Roma, no séc. XVI, chegando empalhado ao Vaticano depois de ter naufragado à vista de Génova!
Ao terceiro dia de viagem o navio recolhe um grupo de populares sérvios, à deriva no mar quando fugiam da Sérvia para a Itália, depois do atentado de Serajevo. Na coberta há cantares e danças populares com os sérvios.
O pior é quando o grande paquete é abordado por um poderoso couraçado austro-húngaro, que exige a entrega dos náufragos, em violação das normas internacionais do salvamento marítimo. Os náufragos são entregues através de balsas. Mas um deles atira uma bomba que penetra pela boca dum canhão e incendeia o couraçado, que dispara e afunda o navio. E tudo acaba num naufrágio geral, a embarcar nas balsas de salvamento.
Com ironia crítica e sarcasmo quanto baste, é a guerra de 14 em causa? É o fim do império austro-húngaro? É a Europa louca de há cem anos? É a humana condição? É a arte e os tiques das elites? É o cinema, vitimado então pelo ecrã da televisão?
O génio tem sempre leituras múltiplas. E multifacetadas.