domingo, 26 de abril de 2015

Inferno

«O panorama apresentado num canal da TV sobre urgências em diversos hospitais tem duas características que aumentam a gravidade do problema desvendado há três meses. Não é conjuntural, mas cumulativo. Doravante será provavelmente sempre pior, se não forem tomadas medidas radicais. 
A segunda circunstância é a intenção deliberada de esconder o problema. Visível na comparação entre as imagens da câmara indiscreta e as da câmara autorizada. Já se sabia que em algumas urgências se mostra a jornalistas apenas a parte civilizada, externa. Portas adentro, o inferno é outro. (...) 
As urgências são hoje um inferno, porque foi destruída a sua capacidade: escalas de dimensão “económica”, redução a 50% do pagamento de horas extras, não-substituição de profissionais reformados, emigrados ou desistentes; paragem na constituição das unidades de saúde familiar (USF) a montante do problema e congelamento da criação de cuidados continuados a idosos e dependentes (CCI) a jusante, recurso a médicos tarefeiros arregimentados por empresas, entrega das chefias a profissionais de bom nível, mas muito jovens, sem senioridade para imporem respeito e sem que a equipa que precariamente dirigem assegure produtividade no trabalho de banco e continuidade de cuidados. Sabemos que, no afã de agradar, alguns administradores cortaram camas de internamento, sem precaver o futuro, ou sequer o presente. Sabemos que a procura se alterou com o envelhecimento, a pluripatologia, a prática recorrente de alguns lares lucrativos despejarem na urgência os idosos doentes com patologias ignobilmente agravadas, por não quererem contratar pessoal de saúde e não haver quem a tal os obrigue. 
Sabemos que emigraram em 2014, segundo as respectivas ordens, 400 médicos (tal como 500 médicos dentistas) e outros tantos enfermeiros. Sabemos que começa a faltar o material de consumo. Já agora, sabemos também que os hospitais devem hoje cerca de 700 milhões de euros à indústria farmacêutica e cerca de 600 milhões às empresas que vendem dispositivos médicos, tornando a gestão do quotidiano um permanente operação de relações públicas com credores.
Tudo isto era previsível (...) se tivesse havido quem olhasse o sistema de forma global, e não de forma orçamental. Quem ouvisse os interessados, visitasse urgências de surpresa, falasse mais com o povo, andasse de metro e autocarro, desse crédito a jornalistas sérios e experientes. (...)
 Depois, ainda, por os seus amigos lá de fora e alguns opinadores cá de dentro prescreverem o mercado e suas falhas como terapêutica única contra as falhas de Governo. (...)» 
[Correia de Campos, in PÚBLICO]