É sabido. Uma boa ficção supera a realidade. Do ponto em que não ofenda as normas da verosimilhança, substitui-a e ocupa o seu lugar com inegáveis vantagens. O folhetim do preso 44 atesta-o de sobejo.
É ver aqui, como simples exemplo, o que vislumbra no caso um ficcionista, mesmo aquele com provas dadas de ser capaz no imaginar de um enredo. É certo que, enquanto obreiro das artes literárias, ele se limita à observação da realidade como matéria diegética. Os factos apenas o atingem enquanto peripécias. Não toma partidos, nem exprime opiniões sobre gestos e práticas jurídicos, nem éticas, nem morais, nem as implicações sociais duma justiça elementar. Em bom rigor não lhe competirá fazê-lo. Ele é escritor, e enquanto tal não é um julgador. E quando a literatura ocupa as funções do julgador, morrem nela as artes literárias. Fica apenas o panfleto militante, é a história que o atesta.
Sem ironias, porém, e a contrario sensu, o que fizeram há muito os magistrados de turno foi pegar-lhe na palavra e cumprirem o papel do ficcionista. Agarram num episódio que assumem como real e elaboram sobre ele uma tese jurídica. E lá andam a tentar provar que o preso 44 vivia acima das suas capacidades conhecidas. Em seguida o arguido tinha uma fortuna oculta em nome de terceiro. Tudo isto é verosímil, por ser da vida real o aforismo vicentino de que quem cabritos vende e cabras não tem de algum lado lhe vem.
No final entra no enredo o indispensável deus-ex-maquina: a fortuna teve origem criminosa, designadamente em actos de corrupção passiva enquanto foi governante.
Basta entregar uns dados que são secretos à voracidade da máquina da informação e o julgamento público está feito, com grande economia de meios e uma sentença à medida.
Ali se explica o modus-faciendi, com outro pormenor. Só que...