domingo, 26 de abril de 2015

Figaro

O tempo frio espantou de São Lázaro as bancas da sueca. E desde que o furor da ventania fez desabar um dia as tílias da velha história, até as magnólias cresceram mais um palmo.
Quem ainda se mantém no posto é o velho figaro, na barbearia cor-de-rosa. Guarda lá dentro gestos já esquecidos, e serve a clientela em cadeiras cromadas, duma Casa Pessoa que em Lisboa havia. Refastelo-me numa e faço a barba.
A um canto ronrona um pequeno transistor, sintonizado numa emissora católica. O diácono reza um padre-nosso e os fiéis respondem com avé-marias. - Bendita sois Vós entre as mulheres! - desfia o coro, dez vezes duma assentada. Até chegar a última estação.
O mestre espevita-me na cara a espuma da sapoliva. E eu fecho os olhos, enquanto vou ouvindo o ranger da navalha no restolho dos pêlos. Oiço-a mais do que a sinto, tal é a suavidade. Ele inclina-me a cabeça com a polpa dos dedos leves, conforme lhe dá mais jeito. E no fim passeia por ali, a degolar algum sobrevivente.
Acordo com o arrepio salino da pedra-alúmen a passear no mento. Ao resto cabem uns salpicos de loção, no veludito dos dedos. E até eu me esqueci do tempo mau.