quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Excertos de excerto de ode

(...)
Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de infinito. (...)
Nossa Senhora 
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por saber que nunca os realizaremos... (...)
Vem, dolorosa, 
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes,
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados. (...)
Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé antepé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.
Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente como um gesto materno afagando,
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste, 
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,
A lua começa a ser real.
[POESIAS de Álvaro de Campos, Ed. Ática, Lx 1964]