Despede-me o Porto na forma do costume, debaixo dum dilúvio. Mas o dia correu bem, salvo que não estavam à espera na livraria os últimos versos do Pires Cabral, conforme combinado. Dizem que já esgotou a edição da Cotovia, e eu folgo em lugar de lamentar. Pior que tudo era encontrar a edição inteira aqui, e o mundo todo a dormir!
Ressoa a invernia pelas placas sujas dos telhados do galpão de embarque. E os viajantes, que parecem sempre os mesmos encostados às paredes, ruminam solidões e fúrias silenciosas com o atraso dos paquidermes. Lá vem o meu, dez minutos atrasado. A noite já se instalou e lá dentro procuro o meu lugar, mas não há luzes no tecto. Eu grito lá do fundo - Falta luz, mestre! E nada, o paquiderme começa a mover-se. - Ó mestre , falta luz! Lá puxo dos peitorais e triplico - Ó mestre, falta a luz, porra! a acentuar a métrica.
A luz veio, o que não há é números na coxia e acabo a sentar-me no banco derradeiro. Quem me dera num Mali qualquer, a ouvir a Kora dum Toumani.
O paquiderme vai ocupado a mielas, mais tarde acabará por encher, na maior parte com jovens estudantes que imagino dum qualquer politécnico manhoso, ainda amodorrados na ressaca das praxes dos caloiros, se não são caloiros eles todos. Alguns passeiam por écrãs enormes, onde trazem açaimado o mundo inteiro debaixo dos polegares. Nenhum deles solta um gesto, ninguém parece presente, vou rodeado de zombies que talvez tenham hormonas, sobre as quais tenho mais dúvidas que certezas. Vou rodeado de zombies, com hormonas ou sem elas. E fecho os olhos e parto para o Mali, ao menos lá o deserto é total e verdadeiro. Furando a noite, vai caindo a chuva.