Aqui António Guerreiro desmancha o prof. Marcelo.
«Uma palavra mágica fixa o centro para onde é atraído todo o discurso com que Marcelo Rebelo de Sousa se apresentou como candidato à presidência da República. Essa palavra é “vocação”. “Professor na universidade”, disse ele no início, “foi e é a vocação da minha vida”; candidatar-se a Presidente, disse ele no fim, é responder a uma “chamada” e prestar contas a uma instância soberana que decide sobre a “dívida moral” e sobre o momento em que esta deve ser paga.
“É tempo de pagar esta dívida moral”, afirmou o candidato em terras de Celorico de Basto, onde as dívidas e a moral soam muito mais alto do que na capital do vício. E onde se pode reactivar um encantamento que anula esta lei da sociedade moderna: quanto mais a política está em baixo, mais a moral fica por cima. A “vocação” do professor e a “chamada” a que respondeu porque estava em situação de escuta significam a mesma coisa: trata-se de uma escolha electiva e espiritual que, na sua versão laica, remete para uma doutrina da predestinação e, na versão religiosa, diz-se que é por vontade de Deus.
Muitos são os políticos de profissão sem vocação, mas raríssimos são os políticos como este: dotado de um pneuma profético, ele transfigura o seu métier em vocação interior. E, coisa ainda mais rara, traz a essas qualidades mágicas a consistência da autoridade professoral. Lendo os artigos embevecidos que o seu discurso vocacional – de resposta a uma “chamada” – suscitou (até em sítios onde se cultiva a sobriedade), percebemos que essa magia consiste num je ne sais quoi, num dom para exercer uma forma de dominação por meio daquilo a que se chama carisma. Marcelo Rebelo de Sousa não é apenas um caso especial de vocação; é também um fenómeno carismático. (...)
Ciente dos seus dons naturais e confirmando o carácter genuíno e verdadeiro da sua vocação, disse ele no início do seu discurso que tinha “sido tocado” e tocara “a vida de milhares de alunos e de alunas”. Tocar e ser tocado significa despertar a parte irracional das afecções humanas. É o lado mágico do carisma. (...)
O que importa perceber é como o carisma é produzido, e para isso é preciso olhar para os que acreditam nele, já que ele só existe na medida em que é exposto e olhado como tal. Neste caso, esse olhar do crente, submetido ao domínio carismático, foi um espectáculo televisivo dominical, celebrado como oração vespertina. Os jornalistas que o recebiam e faziam de interlocutores exibiam sempre um ar extasiado e devoto perante as palavras e a voz do “professor”. Todos cumpriram a mesma missão: sublinhar, perante os espectadores, a relação carismática.
Quem experimentou durante tanto tempo esta magia da dominação sente-se agora “chamado”. Quem o chama?»
[in PÚBLICO, Ípsílon)