Esta menina, que tem doze anos e três irmãos mais novos, desce pela mão da mãe o portaló dum vapor colonial, na Rocha do Conde de Óbidos. Nasceu e fez-se o que é numa província ultramarina, onde o verão e a liberdade eram eternos. Agora acaba de chegar a um país tristonho, num dia de inverno cinzento, e em breve apanhará um comboio ronceiro, com bancos de madeira, que vai partir para o Norte. E quando chegar ao Porto, estão a dar-se em casa de Rubinho os últimos retoques na montagem da árvore de Natal, que já dura há uma semana.
Anos depois, quando Rubinho passar férias na Granja, esta menina vai chegar no comboio todas as manhãs, e venderá saquinhas de pipocas na praia, para ajudar a mãe a manter a família.
Anos depois, quando Rubinho andar entretido a descobrir a vida no peito acolchoado duma senhora inglesa, há-de afagar a menina as frieiras dos dedos, por causa da água gelada do tanque, onde lava a roupa das camas dos hóspedes, para ajudar a mãe a manter a família.
Anos depois, quando Rubinho for para a universidade, onde o esperam os mestres que lhe hão-de explicar o pensamento dos filósofos, irá esta menina à escola técnica nocturna, que as horas do dia são para ajudar a mãe a manter a família.
Anos depois havemos nós de ler as memórias de Rubinho, e adentrar-nos com ele nos meandros do surrealismo. O que nos valia a pena era aprender a sustentar uma família. Mas o mundo é o que é, se não o que dele fazem.