domingo, 20 de julho de 2008

Requiem

Quando vi, na revista LER, que uma autora determinada atingira o milhão de exemplares, fui a correr para não perder o milionésimo. Faz-me falta, a mim, a literatura. E as dez páginas de entrevista numa revista daquelas, apesar das armadilhas escondidas no trajecto, funcionaram como uma caução.
Ingenuidade minha, que vivo alheio às coisas do mercado e às vezes pago por isso. Mas ouvir dizer à autora que a sua literatura fez abanar não sei quê, e um certo dia ressuscitou o mercado por milagre dos seus livros, além de que o Saramago, vamos lá, ganhou o prémio Nobel, e abriram as FNAC, e também porque as pessoas que vão ao supermercado passaram a comprar a margarina mais os livros, e assim se viram a ler... tudo aquilo me empolgou.
Queria ver o que é isso de contar a vida tal como ela é. E saber se aquela história já se passara comigo. Queria talvez convencer-me, sei lá, de que a minha vida também dava um bom romance. Vim para casa e pus-me a ler.
Cheguei à página vinte atolado em inanidades, e da trinta não passei, que já os olhos mo não autorizaram. Voltei a ler a entrevista. E acabei por tropeçar no equívoco fatal de que vivem estes xaropes literários. Toda a arte que têm para nos dar é aquela que se mede pelo mercado. Quer dizer, é a que cada um de nós quiser. Não há outro cânone, outro valor, outro critério, senão o da nossa inépcia consumidora. Tudo aquilo que se disse, e se teorizou, e se sentiu e se arriscou fazer, durante séculos, na literatura, perdeu significado e importância no alegre mundo literário desta gente. A isso chama a autora tirania literária, e só ouvir-lho dizer provoca o riso.
"As pessoas compram porque querem!" Lá nisso dou-lhe razão. E escreva cada um o que souber. Chame-lhe palha, chame-lhe vigarice, chame-lhe produto descartável. Mas não lhe chame literatura, que isso é uma grande falta de respeito.
Pus de lado a entrevista mais o livro, de que salvei dois parágrafos. E fui ouvir um Requiem que ali tenho, como quem faz penitência. Pelos 50 embondeiros que foram sacrificados ao meu milionésimo exemplar de papelada inútil. E pelos tristes compradores em que me incluo, esses idiotas úteis, que trazem ganga para casa, quando podiam trazer mais margarina.