terça-feira, 22 de julho de 2008

A matilha das gruas

Gostei sempre das hortas nas traseiras. Vejo-lhes da janela a geometria, o xadrez dos talhões, os verdes variados, e esqueço-me de que estou numa jaula de betão. Da Mariana, então, é melhor nem falar! Quando viemos para aqui, há-de haver uns dez anos, estava a começar a primavera. Pois quem a quisesse ver era à varanda, logo cedo, que os hortelãos chegavam antes do sol, se o sol nascia. E andavam horas ali, a formigar, numa errância caprichosa, a que não se via o fim. E só ganhava sentido algum tempo depois com o chão a mudar de cor, quando as couves começavam a crescer, as alfaces deitavam corpo, e os fios do feijão verde se enrolavam nas estacas.
Eu encostava-me a ela na varanda, os olhos a correr pelo telhado escuro da igreja modernista, ali ao lado, pelo campo de brincadeiras duma escola, pela copa duns eucaliptos que baloiçavam na brisa, ao pé dum logradouro de silvados. Havia casas de pedra e um renque de choupos numa quinta de milho, que verdejava ao lado duma fábrica. Ao fundo cruzava uma estrada onde os carros passavam a correr, que tinham pressa de chegar a Braga. E do outro lado os cubos de pedra duma universidade, e um vulto confuso de hospital, onde uma chaminé por vezes fumegava.
O resto era o casario da cidade, a espreitar atrás das tílias até ao horizonte. Adivinhava-se ao longe Matosinhos e as terras de Leça da Palmeira, via-se ao fundo uma nesga de mar, se a neblina deixava. Foi assim durante muito tempo.
Até que as gruas amarelas chegaram, há dois anos, e começaram a ruminar talhadas de paisagem. Deixou de se ver a fábrica e a escola, e a estrada que vai para Braga, e o logradouro das silvas, e as casitas de pedra no meio do milharal. O mundo tornou-se mais pequeno e até o hospital desapareceu. Ficou só este angulozito onde espreitam eucaliptos, copas difusas de tílias e uma lembrança de mar. Mas já chegou a grua que faltava, e as máquinas de lagartas.
É por isso que eu gosto das hortas nas traseiras, com telheiros de galinhas e latadas de uvas morangueiras. Não me explicam os absurdos do mundo, mas olho para elas como se fossem minhas. E tenho fé que hão-de manter-me em respeito a matilha das gruas.