(...) Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que já nem com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.
Uma burguesia cívica e políticamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro. (...)
[Guerra Junqueiro, PÁTRIA, 1896]
Uma sociedade só chega à modernidade quando todos os seus elementos, na sua natural diversidade, mutuamente se valorizam e respeitam. Não praticam qualquer igualitarismo, não vivem às palmadinhas nas costas, nem são adeptos do franciscanismo. Porém o catedrático e o canalizador, o administrador e o camponês, o pescador e o médico, o professor e o lojista, têm todos função indispensável. Formam um todo orgânico, viajam todos num convés comum.
Uma sociedade cujas elites não valorizam o povo, se antes o não desconhecem e desprezam, é uma sociedade fracturada e falhada. Está condenada ao naufrágio, não sairá do ancien régime. E uma boa parte dos seus concidadãos nunca chegará a sê-lo.
Esses marginalizados, que não vêem reconhecido o seu lugar, são o verdadeiro tesouro dos privilegiados. A exclusão de uns é a fortuna dos outros. Vivem uns do orçamento, enquanto servem aos outros as trovas do 5º império.