quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Quem disse que esta vida se faz só de epopeias?!

O jornal Terras da Beira seria um bom órgão de imprensa do distrito da Guarda, se lá não houvesse melhor. Mas há. É o jornalinho Alto da Raia, editado na freguesia de São Pedro do Rio Seco. Adiante!
O Terras da Beira dá voz a crónicas quinzenais do Alçada, da Vela. E a última apresenta uma figura notável, a Ondina, que se reproduz com vénia.
«(...) Ondina era o nome duma criatura ainda relativamente jovem, que todas as manhãs, bem cedo, vendia laranjas à saída da ponte que liga as duas margens do Tâmega, mesmo em frente ao mosteiro de São Gonçalo.
Dava consolo ver a alegria com que aquela mulher apregoava enquanto as pessoas, ainda mal acordadas, caminhavam para os seus empregos. Entre os passantes e a Ondina, ao longo dos anos, criara-se uma certa empatia. Os pregões repetiam-se e ecoavam nas águas remansosas do rio, a caminhar apressado, ansioso por se encontrar com o Douro, para as bandas de Entre-os-Rios. 
Ondina tinha uma cara laroca, uma beleza selvagem de olhos amendoados, ternos e doces, uma espécie de diamante raro mas talvez mal lapidado. Não se cansava de lutar pela vida e anunciava, com um sorriso brejeiro, o sustento dos filhos e do marido, fumador inveterado, afogado em vinho verde, sumido de carnes e peito ofegante. Certa manhã de neblina cerrada a agasalhar o rio, o seu Manel finou-se.
No dia seguinte ao funeral, alguém aperaltado, com censuras estudadas, disse-lhe:
- Ó Ondina, é preciso descaramento! Então o teu marido ainda não arrefeceu na campa e tu já estás aí, nesses preparos, a apregoar laranjas?!
A rapariga cerrou os dentes, olhou-o no fundo dos olhos que não despegavam do seu vestido curto, justo, a adelgaçar-lhe o corpo, e  respondeu-lhe, afogada em lágrimas:
- Sou pobre. Os meus filhos têm de comer todos os dias. E sabe que mais? Quem morreu, morreu... Quem compra laranjas? Quem compra laranjas?»