A boa América, que gerou a maior crise financeira desde há cem anos, lá segue tranquila. Enquanto a triste Europa, gerida por elites serventuárias da Nato em troca duas migalhas, escraviza hoje os povos europeus, sobretudo os do Sul, através da austeridade.
Da contra-capa: "Publicado em França dias antes de Le Clézio ser galardoado com o prémio Nobel, A Música da Fome é um romance com uma forte carga autobiográfica, onde o autor narra a decadência duma família oriunda da ilha Maurícia exilada em Paris durante os turbulentos anos 30 e a Segunda Guerra Mundial, anos marcados pela inconsciência dos cidadãos e dos políticos, pelo anti-semitismo e pelo sofrimento gerado pela guerra."
O preâmbulo é todo ele um testamento: «Conheço a fome, sofri-a. Criança, no fim da guerra, faço parte dos que correm pela estrada ao lado dos camiões dos Americanos, estendo as mãos para apanhar embalagens de chewing-gum, chocolates, sacos de pão que os soldados arremessam pelo ar. Criança, sinto tanta sede de gordura que bebo o azeite das latas de sardinha, lambo, deliciado, a colher de óleo de fígado de bacalhau que a minha avó me dá para me fortalecer. Preciso tanto de sal que como às mancheias os cristais de sal cinzento do frasco da cozinha.
Criança, comi pela primeira vez pão branco. Não o pão de miolo do padeiro - pão escuro, esse, feito de farinha deteriorada e serradura, que quase me matou quando eu tinha três anos. Antes um pão quadrado, feito numa forma com farinha de força, leve, odorífera, de miolo tão branco quanto o papel em que escrevo. E, ao escrever, cresce-me água na boca, como se o tempo não tivesse passado e eu continuasse intimamente ligado à minha primeira infância. A fatia de pão macio, fofo, que meto na boca e mal a engulo peço mais, mais, e se a minha avó não o guardasse no armário fechado à chave, poderia devorá-lo todo num instante, até me enjoar. Nunca outra coisa me deixou tão satisfeito, não voltei a comer nada que tanto me agradasse, que assim me saciasse a fome. (...)
Esta fome está dentro de mim. Não posso esquecê-la. Contém uma luz intensa que me impede de esquecer a infância. Sem ela, não teria com certeza conservado a memória desses tempos, desses anos tão longos, em que nos faltava tudo. (...)»
A estrutura do romance comporta quatro fases, na vida da família retornada: Na primeira fase, em Paris, Ethel tem dez anos e segue pela mão do tio-avô Soliman, que tem oitenta. Ele foi médico militar no Congo francês. E quando o pai de Ethel morreu, foi Soliman que assumiu o encargo da sua educação.
A segunda fase é a queda da família na miséria, por erros de Alexandre, o segundo marido da mãe de Ethel; é a retirada de Paris para Nice.
A terceira é a fome e o silêncio colaboracionista do Pétain de Vichy perante a ocupação alemã.
A última é o adeus à França, o adeus ao passado, o adeus a Paris. É o casamento e a partida de Ethel para o Canadá.
Do texto: «Os últimos compassos do Bolero são tensos, violentos, quase insuportáveis. O som sobe, enche a sala, agora toda a assistência está de pé, olha para o palco onde os bailarinos rodopiam, aceleram o movimento. (...) A minha mãe, quando me contou a estreia do Bolero, falou-me da sua emoção, dos gritos, dos aplausos e dos assobios, do tumulto. Algures na mesma sala, encontrava-se um homem que ela nunca conheceu, Claude Lévi-Strauss. Como ele, muito mais tarde, a minha mãe confiou-me que aquela música mudara a sua vida.
Agora compreendo porquê. (...) O Bolero não é uma peça musical como as outras. É uma profecia. Conta a história duma raiva, duma fome. (...)»
Discurso de luxo, tradução sem reparos de maior, por Isabel St. Aubin. Editou a Dom Quixote em Julho 2009. Um mimo raro para o leitor.
[Les uns et les autres]