quinta-feira, 4 de agosto de 2016

A curva da chouriça

Pouco lhe falta para dar a volta a si mesma, um cão a morder no rabo. É por isso que lhe dão um nome assim. Ficou aqui, à vista de Vila Franca, desde que um rei cá passou a inaugurar o comboio. 
No tempo da guerra não havia maneira melhor de mandar aos patrões de Lisboa o que por lá não havia: cestões de fruta e queijos dos rebanhos, e morcelas que a mulher fazia. Algumas foram parar à Checoslováquia, onde um filho da patroa dizem que era diplomata. Em Lisboa havia racionamentos, do pão, do açúcar e da manteiga dos ricos. Por aqui só os trabalhos nunca foram racionados.
Numa noite de Fevereiro lá fui eu, mais um criado, a despachar para Lisboa uma carrada de cestos ao domicílio. O caminho eram vinte e tal quilómetros, às três da manhã saímos nós de casa porque as vacas eram lentas. No cimo da carrada levávamos lenha seca, que as noites eram de gelo.
No alto da Broca as pobres vacas já o tinham pendurado nos focinhos, como as telhas dos telhados. E quando chegámos à curva da chouriça tivemos que parar, fazer uma fogueira e aquecer-nos. Mas nem eu nem o criado éramos capazes de acender um fósforo, que as mãos não davam para isso. Valeu-nos um cristão que subia de madrugada para o Feital e nos acendeu o lume.
O resto pouco mais era que chegar à estação, despachar os cestões ao domicílio nas balanças que lá havia, os homens do comboio encarregavam-se do resto.
Pelos Natais mandavam-nos café, e chocolates pequenos que os filhos achavam no sapatinho, à beira da chaminé.
Desde aí os tempos mudaram tanto que um homem nem acredita. O povo fugiu a salto, a ver se matava a fome. E os patrões acabaram a vender-lhes as courelas por bom preço. Em moeda forte, pois claro, porque não queriam escudos!