De Brey, em Lisboa
Para Q. no Campo Grande
2 de Novembro
Quando ontem me vestia, ouvi um forte ruído que me assustou; pensei que o nosso armazém, cheio de produtos, ia desabar. Achei estranho quando vi as cadeiras, mesas e espelhos moverem-se (...). Sei que me arrastei por um buraco para chegar à rua, a qual me pareceu desconhecida, de tal modo que não sabia onde estava. (...)
Dali vi a margem do rio, para onde muita gente se dirigia. No caminho vi muitos mortos e miseráveis. Fiquei estupefacto quando, antes de chegar, vi o barco e a água serem atirados ao ar e caírem novamente. (...) Entretanto o povo juntava-se no Terreiro do Paço, onde um contava o seu destino, outro se lamentava, gemia e uivava. (...) Passadas duas horas o fogo tinha rompido em muitos lugares da cidade. Quando chegou perto da sua casa (o velho Gens) viu a filha Doroteia enterrada até ao pescoço. O velho ficou calado na minha frente, olhou para a filha, e como não podia ajudá-la corriam-lhe as lágrimas pelas faces. Finalmente, como o fogo se aproximava cada vez mais, foi ele comigo para o Terreiro do Paço, onde a restante família se encontrava com os bens que conseguira salvar.
Quando veio a noite, era uma visão terrível, pois parecia que estávamos no meio do fogo. E quando às 9 horas a alfândega e o palácio do rei pegaram fogo, voavam as faúlhas sobre o Terreiro do Paço como se nevasse. (...)
Não podíamos ir para a cidade por causa do fogo intenso, e também não para a margem do rio, com medo de que continuasse a afundar-se, como já tinha acontecido a uma grande parte. (...) Com este barco irei até Marvila, e depois pelo campo até sua casa. (...)